O ACONTECIMENTO EM OS SERTÕES - UM JORNALISTA, UM SOLDADO, UM FENÔMENO.
O texto abaixo faz parte de um artigo científico elaborado para fins avaliativos da disciplina ESTUDOS EM FILOSOFIA E LITERATURA, ministrado pelo Prof. Dr. Cícero Bezerra Cunha da Universidade Federal de Sergipe, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras, onde sou aluno especial, isto é, aluno que teve o direito de cursar dois semestres, sem vínculo institucional com o Programa. O texto que ora torno público é uma análise de um episódio que ocorreu com Euclides da Cunha e à luz da Filosofia do Acontecimento é visto como um momento em que o espectador de um dado episódio tem uma reação em que percepções e afecções são produzidas em quem vê algo , transformando a visão, o ponto de vista, a partir desse encontro que dá-se o nome de ACONTECIMENTO, que não pode ser confundido com evento, o qual é premeditado, o que não se vincula ao acontecimento.
Aguardo comentários.
Boa leitura.
Um abraço.
Parte
II – O acontecimento em O Sertões, de Euclides da Cunha: primeiros apontamentos
Ao
ser designado como correspondente de guerra para cobrir o conflito entre
patrícios que ocorria no semiárido baiano, Euclides da Cunha já havia se
apropriado de informações sobre as motivações que levaram o povo do norte do
Brasil a se rebelar contra a recém-instalada República, com a redação de dois
artigos para jornal supracitado. Eis o germinal do livro monumento, nas
palavras de Joaquim Nabuco, que marcaria para sempre a Literatura brasileira,
lançada em 1902, cinco após o fim do combate em terras baianas.
Como
repórter do jornal A Província de São Paulo, o Engenheiro e Militar, Euclides
da Cunha desloca-se para o palco da guerra e demonstra sensibilidade aguçada
para o conhecimento, para o saber e para tal faz pesquisas em Arquivos Públicos,
em Bibliotecas, realiza entrevistas com soldados que vão e voltam da guerra e
com civis, também sujeitos do combate. Durante sua estada no palco da guerra,
Euclides permanece mais tempo no quartel general do Exército, no município
vizinho de Monte Santo, distante 6 léguas, registrando em seus blocos de notas,
cujo teor é enviado a São Paulo por uma estação telegráfica instalada somente
por causa do conflito bélico. Vai aos arredores de Belo Monte, esse era o nome
oficial da vila recém fundada por Antonio Conselheiro, líder do lugar. Mas o nome
que fica para a posteridade é Canudos em face de que no local havia uma sede de
fazenda, mas abandonada, a qual recebia esse nome.
Perspicaz,
Euclides guarda para si as anotações, pois fica sabendo que as notícias por ele
enviadas não são publicadas na íntegra, causando deturpações na veracidade dos
fatos e dos relatos. São essas anotações, com futuras pesquisas, que vão formar
o livro Os Sertões, considerado obra-prima da Literatura Brasileira e
Universal, sendo objeto de estudo em diversos países europeus. De imediato,
causa impacto pelo léxico utilizado, pela sintaxe e estilo atribuídos, uma vez
que ele não faz um relato “cru” de um conflito bélico e seus tradicionais
resultados: mortes, tiroteio, combates diretos, emboscadas e etc. Entretanto
faz um estudo detalhado do lugar, do homem que habita aquele lugar e enfim o
próprio conflito. Chamando a atenção para o uso rico de metáforas, antíteses,
comparações e análises tanto do lugar, quanto do homem e do próprio conflito.
Daí ser considerado um livro que passeia pelo ensaio cientifico geológico,
botânico, antropológico, político e sociológico, mas não “deixa” a literatura devido
ao modo como as palavras, a linguagem, a sua materialidade é tratada, lapidada,
transformada. É também herdeiro do Positivismo, ciência dominante nos meios
acadêmicos da época. É um livro que emociona sob diversos aspectos.
A
densidade do livro, aliada ao quantitativo de informações ali contidas, exige
de quem se propõe a estudá-lo a ter que sacrificar-se para a escolha desse ou
daquele detalhe, por isso elegemos um
subtema, “morte” para entendermos o acontecimento em sua obra, destacando
somente aquele em que o escritor se depara com um soldado morto. Esse episódio
é descrito na primeira parte do livro denominada O Homem, porém o autor não
deixa de nos apresentar ao conflito desde as primeiras páginas, pois esse é o
“assunto” principal do seu livro.
Uma
das características mais marcantes de os Sertões diz respeito ao modo de
deslocamento no espaço do próprio autor/ protagonista do seu ensaio “antropoético”
é a condição de andante, seja a cavalo seja a pé, predominando esse último
modo.
Em meio às variáveis narrativas –
espaço geográfico, pessoas (não são personagens os sujeitos do seu texto, mas
gente com vida real, não ficcional), os episódios – destacamos uma das mais
marcantes e predominantes em um conflito bélico: a morte. Euclides nos apresenta
esse momento da vida de diversos modos e ocorrências seja individual ou
coletivamente, entre e interfamiliar, civis e militares. Por isso elegemos um
desses momentos em que cansado do canhoneiro, o próprio autor revela um
enfrentamento de si com o outro num misto de desvelamento, de mudança aparente
do ponto de vista político (o autor/narrador tinha uma opinião contrária ao
conselheiro e sua gente antes de chegar ao palco de guerra, ainda em São Paulo,
quando escreveu os artigos para o jornal que o contratara como repórter dessa
mesma guerra, como afirmamos acima). No seu estilo o autor sempre tem à mão
para criar suas frases, seus parágrafos, os elementos naturais, transformando-os
em poesia: o sol que sempre brilha e esquenta, o ar seco na maior parte do dia;
e a flora ressequida, agressiva, mas colorida e aromática; os pássaros, os
bichos rasteiros. É nesse cenário natural e não–fictício que se dá aquele
momento em que perceptos e afetos incidem sobre os escritos e personagens
reais: a visão de um soldado morto, isolado cujo trecho recebe o nome de “Higrômetros
singulares”. É o próprio homem que mede a humidade do ar em seu corpo, em sua
pele, dando-lhe ao ar, à paisagem, a vida:
Percorrendo
certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à
monotonia de um canhoneiro frouxo de tiros espaçados e soturno, encontramos,
no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se
dispunham circulando num vale único. Pequenos arbustos, icozeiras virentes
viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao
lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore
única, uma quixabeira alta, sombreando a vegetação franzina.(CUNHA, 1998, p.
37-38)
Esse
trecho vai nos envolvendo e anunciando uma surpresa. Notemos que os verbos que
se referem a um sujeito humano estão no primeiro período, mas nele o objeto
primeiro não aparece, a flora do lugar com aparência de um velho jardim e como
se não bastasse, abandonado. Nada mais, nada menos que o similar de um
cemitério sem cuidados, ou também abandonado. Entretanto a flora rasteira tem
uma companheira, uma frondosa árvore verde impondo-se àquele lugar desprezado,
configurando alguns contrastes e antíteses como seco X verdejante, e, o mais
pertinente ao “clima” criado pelo suspense abandono X vigília e vida X morte.
Após esse preâmbulo, poeticamente o
narrador se depara com o bizarro:
O sol poente desatava, longa, a sua
sombra pelo chão e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida
para os céus – um soldado descansava.(idem, p. 38)
Este acontecimento provoca em Euclides –
narrador e escritor – um “compadecimento” político, pois sem esquecer do modo
como aquele “soldado” fora obrigado a participar da guerra, deixando a própria
família à mercê da própria sorte, vê nosso analista que a solidão da morte
livrara-o de ser enterrado em uma vala comum, misturando-se a muitos outros. “...o
destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão:
livrara-o da promiscuidade de lúgubre de um fosso repugnante...” (ibidem.)
Enfim
descreve Euclides como o corpo daquele soldado tornara-se um medidor da umidade
dos ares.
E estava intacto. Murchara apenas.
Mumificara conversando com os traços fisionômicos, de modo a incluir a ilusão
extra de um lutador cansado, recuperando-se em tranquilo sono, a sombra daquela
árvore benfazeja. Nem um verme – o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria
– lhe maculares os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição
repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho, revelando de modo
absoluto mas sugestivo a secura extrema
dos ares ( idem, ibidem – grifo nosso).
Mais uma vez sentimos as antíteses postas por Euclides cuja maior delas
é vida x morte, é a morte superada pela vida, entretanto mesmo sem vida, a
morte não apodreceu; mesmo sem respirar, parecia um lutador cansado; mesmo
morto, à sombra, o verde da quixabeira devolvia-lhe a vida; intacto estava o
soldado morto que murchara,
mumificara-se transformando-se em higrômetro, estranho, inesperado e bizarro.
E
assim vai tecendo a sua costura, o seu bordado, a sua tela naqueles paragens o
nosso ensaísta, na função do repórter de guerra, literalmente entre a vida e a
morte de brasileiros que se enfrentaram em uma guerra
fratricidas ocorrida no final do século XIX
cujos relatos transformados em livro marcaram para sempre a literatura
brasileira sem, no entanto, ser o
próprio autor, um homem de ação política. Apesar disso revela ao Brasil e ao
mundo, outro Brasil, outro mundo possível, o de que aquele país do final do
século XIX não era restrito ao litoral.
Concluindo...
Parafraseando
o prof. Cícero Bezerra, em artigo sobre Um sopro de vida, de Clarice Lispector,
quando ali vê o professor que diante da escrita a personagem é tomada por
estado de “graça” ou “dom” que irrompe
e, como sendo um acontecimento, irrompe no íntimo da personagem exigindo um
relação com o outro, surpreendentemente, instantaneamente. Do mesmo modo temos
o acontecimento de Euclides, escritor, narrador e personagem ante a visão real
do soldado morto, um acontecimento, não como graça ou dom, mas como força que
emerge de dentro para fora, transformado em emoção de piedade- personagem;
sensação de abandono – narrador; comprovação de desprezo pelas autoridades –
escritor. É a escritura de um texto não mais hibrido, mas triplo envolvendo
personagem, narrador e escritor. Eis Os Sertões, o livro vingador.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BEZERRA,
Cícero Cunha. Clarice Lispector:
escrever para se livrar de si. O Eixo e a roda revista de filosofia, Belo
Horizonte, v. 24, n. 2, p. 157-172, 2015.
CUNHA,
Euclides da. Os Sertões, campanha de Canudos. Edição crítica de Walnice
Nogueira Galvão. São Paulo: Ática, 1998.
ROJAS,
Alonso Silva e SERRANO, Jorge Francisco Maldonado. Filosofía y Literatura em Deleuze y Guattari: creación y acontecimiento.
Práxis Filosófica Nueva serie, Universidad Industrial de Santander, n. 45, p.
171-202, julio-diciembre 2017