No calor da hora, mesmo com chuva
breve – um ensaio, uma leitura inicial
de Memórias Sentimentais de João
Miramar, de Oswald de Andrade.
Notas esparsas sobre Memórias
sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade
O breve e presente ensaio que ora torno
público, feito sobre o livro Memórias sentimentais de João Miramar, de autoria de
Oswald de Andrade e publicado no ano de 1924, é uma das referências, um dos marcos do chamado Modernismo brasileiro cujo diferencial é a construção de
capítulos (por ora assim vamos considerar) bastante curtos e com pouca, mas muito
pouca relação entre todos eles.
O que nos motivou a escrever esse
texto foi um trabalho apresentado aos estudantes da 3ª
série, do turno vespertino, do Colégio Estadual Paulo Freire aqui no município de
Fátima onde leciono desde o ano de 2001. Então a nossa pretensão é, na verdade, estabelecer um diálogo com esta obra da qual ouvia muito falar desde os tempos
da Universidade quando cursava Educação Física (já que eu era um estudante daquele curso fora dos padrões atléticos) e tinha muitas amizades com os estudantes de Letras, História, Pedagogia e Geografia, majoritariamente com os de Letras e desde então a
paixão pela leitura e pela literatura brasileira já fazia parte do meu
cotidiano. Desde aquela época, final dos anos de 1980, que eu ouvi muitos comentários, fiz algumas leituras
sobre ele - o livro aqui em tese - e no exercício profissional, na docência do Ensino Médio, com um
contato mais aproximado, entretanto a leitura do texto na totalidade nunca havia
feito, o que fiz agora no ano de 2021 já depois de diplomado em Letras também pela
Universidade federal de Sergipe e com meus quase 30 anos de trabalho.
O arquivo que nós utilizamos está
disponível na internet, no banco de dados da Universidade de São Paulo, cuja referência exata colocaremos ao final, é um texto composto por 93 páginas e a
nossa primeira observação é feita a partir da página 32, onde começa o prefácio e seu sugestivo
título, à guisa do prefácio. Nele temos a apresentação do personagem que dá nome
ao romance, com a indicação de suposta ocupação profissional, o jornal impresso com o
termo imperialismo "João Miramar abandona momentaneamente o periodismo
para fazer a sua entrada de homem moderno na espinhosa carreira das
Letras"
VAMOS AO TEXTO
Em “Gare do infinito”, nome dado ao terceiro episódio-fragmento, isso mesmo, a narrativa não é dividida em capítulos, o narrador noticia o falecimento do próprio pai o trecho é por demais poético assim ele se pronuncia no jantar noturno a voz toda preta de mamãe ia me buscar para a reza do anjo que carregou meu pai"
Em “Perigo das armas” quinto
episódio-fragmento (doravante o numeral seguido de EF)lendo um livro sobre o
rei Carlos Magno o narrador provoca um acidente.
No
18º EF, de modo sutil(?) temos a “notícia” de que o narrador não é o personagem
que dá nome à narrativa, cujo título é “Informações”:
“Gustavo
Dalbert numa noite de cabelo e cigarro disse-me que a arte era tudo mas a vida
nada. Ele era músico e ia morar em Paris comigo, o amigo e jovem poeta João
Miramar.
Havia um
outro artista na vizinhança, o Bandeirinha barítono e outros poetas na cidade.”
O neologismo, uma das marcas
oswadianas, aparece em vários momentos, e esta nos chamou a atenção pela força
política que exerce, o que ocorre no 27º EF ao se referir a um personagem: “Pantico norte-americava.”
Usando e abusando(esta no bom
sentido – rs), o narrador assim se expressa no 37º EF: 37. Vejam os destaques que
fiz.
“A MADÔ DO
COMEÇO
Era filha
puberdada do dono do restaurante de olhos azuis.
As pátrias
longínquas cresciam no inverno da sala como legumes tardios. E o escuro
da escada subia quedas ao sétimo andar.
Sonhamos um livro de viagens. “
Em “A
calma descrita por Homero”, EF 53, vejam que delícia de sonoridade, tanto pelas
consoantes, quanto pelas vogais:
“ Depois Almeria acordou a passagem do mar nas colunas que estreitam a
estreita entrada das terras mediterrâneas.
Na África Ceuta sepulcrava ao luar. E do outro lado a pedra
anglorochosa fincava a garra na Espanha.”
A onomatopeia se faz presente ao
trazer um grilo para a narrativa, no EP61, sob o título Casa da Patarroxa”:
“A noite
O sapo o
cachorro o galo e o grilo
Triste
tris-tris-tris-te
Uberaba
aba-aba
Ataque e o
relógio taque-taque
Saias gordas e cigarros”
Destaco
ainda o vanguardismo com a junção dos termos “pata” e “roxa” duplicando a letra
“erre” na junção deles para formar um só termo, o que foi oficializado muitas
décadas depois com o atual acordo ortográfica da Língua Portuguesa. Esse moço
era um danado, mesmo hein minha gente?
Em Fausta,
EF 71, a ironia beira o sarcasmo ao se referir, o narrador, aos costumes
parisienses, e em meio a tantos neologismos, agora destaco um arcaísmo, para
nosso contexto, quando as fotos são chamadas de instantâneos. O poder econômico
do narrador( e do autor) também são apontados no EP 73, ao se referir ao bairro
Higienópolis, na cidade de São Paulo, tradicionalmente ocupado por fazendeiros
do café, industriais, etc. nesse mesmo EF, o narrado faz uma divertida alusão ao
que considerei dias de intensa preguiça: “Os domingos eram grávidos de sono.”
Mais uma riqueza de sonoridade está no EP 74, cujo título, enigmático
é “sol o may”:
“Um soldado só para policiar minha pátria inteira
E o gru-gru dos grilos grelam gaitas
E os sapos
sapeiam sapas sopas
Lampiões
lamparinas
Delenda
linda Salomé
A javá é uma polca porca com poeira azul
Mas o roxo
arroxa a procissão de cortinas cor-de-rosa”
Em um modo
divertido para se referir à própria paternidade, o narrador, elege para o momento,
a sogra, ao anunciar que ela será avó, no EP 75.
Uma
referência histórica explícita aparece no EP 84, provavelmente a I Guerra
Mundial, uma vez que o livro fora publicado nos anos 1920. O narrador assim se
refere:
“Eu vou
logo para o Brasil quando os alemães deixarem. Já fui preso duas vezes. Depois
eu conto. A Alemanha vai ganhar nesta guerra.”
No EP 92, o autor faz uso da
metalinguagem mais uma vez ao traduzir em poema mais um fragmento da sua
narrativa:
“ESTELÁRIO
Coração esperançava esperançoso
Começo claro da noite cidadina
Retalhos grandes de nuvens
E duas
estrelas vivas
Trem rolava com minha estrela
Bordando a vida fabricadora
Do Brás à Luz
Rolah
estrelava o Hotel Suíço”
Com
presença da sonoridade já vista antes e destacada nesse texto, tanto com
consoantes, quando com vogais (não uso os nomes técnicos desses fenômenos
linguísticos para provocar nos possíveis leitores, a curiosidade). Também
outras referências à cidade de São Paulo estão presentes.
O jogo do
bicho aparece no EP seguinte, para assim, configurar o posicionamento nada
convencional do autor, muito mais do que o do narrador.
No 100º EP, cujo título lembra mais uma provocação, o
narrador confirma mais uma vez sua origem social e econômica com as viagens a
Paris, a compra de livros; neste caso temos a divulgação de obras literárias,
outro fator determinante de classe, a alfabetização e a aquisição de livros, o
uso de termos em francês, isto é, o autor do pedido, sabe(ou supostamente sabe)
falar o idioma como podemos constatar no parágrafo seguinte:
“Não se esqueça de me trazer novos romances. Já acabei de ler o Primo
Basílio que muito me fez chorar. O Dr. Pepe Esborracha emprestou-me Les
civilisés e prometeu trazer outros livros quando ele vier. Veja se achas na
livraria Garraux a Arte de Bem Escrever do Padre Albalat e La garçonne que
dizem que é muito bonito e são as últimas novidades de Paris.
Não se esqueça de todas as minhas outras encomendas e traga também um
par de sapatos de lona branca para Celiazinha.”
Um dos
poucos momentos em que há diálogos de modo explícito, com a presença dos sinais
gráficos como o travessão - na
narrativa, ocorre no EP 103.
O EP
117, O Emprestador de livro, traz novamente a referência aos livros com umm
vocabulário ácido, sarcástico, vejamos:
“Uma recaída do resfriado de Celiazinha pusera outra vez em evidência
a sabença calomelânica do Dr. Pepe Esborracha.” Qualidade atribuída ao
doutor por causa da calomelano, Cloreto mercuroso, de qualidades purgativas. (in
Dicionário melhoramentos).
Mais uma atualidade oswaldiana – com o sarcasmo costumeiro - está
presente no EP 119 , “Companhia Industrial e Segurista de Imóveis Móveis aceitara
o negocio depois do vesgo exame do grande advogado Bica-Bam-Buda.”
Agora, a
partir do EF 129, cujo título é ATO III. CENA I, a
narrativa traz elementos do teatro, provavelmente para indicar que os
personagens encenam como atuarão perante os demais, numa associação com as
pessoas reais, isto é, que fazem de conta, representam seus sentimentos, suas
emoções assim quando querem. Também usados os termos
“ BASTIDORES”, EF 133.
No EP 135 O Poeta romano, nascido na França, o autor de Satiricon é citado; in
Wikipedia.
Em A
Denúncia, EF 139, o autor faz uma brincadeira com a onomatopeia do toque do
telefone com o termo composto, tim por tim, isto é, um modo de se referir a uma
narrativa contada nos mínimos detalhes.
No EF 140 dois
momentos de diversão para adultos são citados: ! ] com a frase, “Tirei linha à vontade “, possivelmente uma gíria da época cujo
significado não conheço; outras aparecem nesse mesmo espaço. 2º uma referencia
a um bar muito conhecido mais adiante em outra obra literária, o Bataclan: Preciso
identificar o significado desse termo, nome do prostíbulo de Gabriela, Jorge
Amado, inclusive saber por que está separado por sílabas.
No EF seguinte, mais
duas pérolas de figuras de estilo e com as de linguagem são usadas:
I - “Inventados inventários em maços de almaços” – aliteração com
ironia
II – “Um silêncio
ecoou a aparição do súbito homem célebre teso como um taco moreno.” Que
lindo paradoxo: silêncio que ecoa.
Em EF 143, “ E tia Gabriela sogra granadeira grasnou graves grosas de infâmias.”,
mais uma brincadeira sonora com um claro propósito de se dirigir a alguém que
não tenha caído no gosto do narrador.
A
narrativa no fórum, EF 145, para os protestos contra o narrador, o título do
capítulo é uma referência ao discurso repetitivo que ouviam, pois eram muitas
as dívidas.
O EF, seguinte,
cujo título, VERBO
CRACKAR é um Fantástico poema para ilustrar a quebradeira financeira:
“Eu empobreço de repente
Tu enriqueces por minha causa
Ele azula para o sertão
Nós entramos em concordata
Vós protestais por preferência
Eles escafedem a massa
Sê pirata
Sede trouxas
Abrindo o pala
Pessoal sarado.
Oxalá que eu tivesse sabido que esse
verbo era irregular.”
No EF “156. BATEM
SINOS POR D. CÉLIA” Por
que o geógrafo se chama assim e com este sobrenome?, “o eloqüente confrade e ilustre geógrafo, Dr. Pôncio Pilatos da Glória”. Por que nada fez
pela exploração das terras devolutas desse país? Mais um sarcasmo do autor.
Em mais
um diálogo do narrador com o eu-lírico, ambos criação do autor e sua verve
inventiva e mais um poema nessa narrativa multi-gênero, o autor nos brinda com
deliciosos versos quando vai nos aproximando dos momentos finais dessa jornada:
“158. RECREIO PINGUE-PONGUE
Miramar a vida é relativa
O acontecido não teria sido
Se nascesses só
Sem a mãe que te deixou virtudes caladas
O acontecido te ofertou
A filhinha de olhos claros
Abertos para os dias a vir
És o elo duma cadeia infinita
Abraça o Dr. Mandarim
E soma ele ao azul desta manhã
Louça”
“Nosso apartamento na casa art-nouveau de Madame Kolny, Praça do Arouche frente ao pára-sol folhudo de D.
Flor Vermelha, tinha dois quartos quadrados e um jardim de invernais orquídeas
como saudades.” Uma referência a Mario de Andrade no EF 159. SERÃO DOS
CONFORMADOS?
O EF160, um DISCURSO ANÁLOGO AO APAGAMENTO DA LUZ DURANTE O FOX-TROT
PELO DR. MANDARIM PEDROSO, um capítulo que foge aos demais pela
extensão: devo rever e reler. Mas não sei quando.
A narrativa é encerrada com ENTREVISTA ENTREVISTA, assim mesmo,
repetido,
Episódio-Fragmento 163, Um diálogo conclusivo e também uma conversa com o leitor.
Olha o
nome do hotel, quanta semelhança com o sobrenome do personagem que dá nome ao
título.
Sestri
Levante — Hotel Miramare. 1923.
ATENÇÃO - RSRSRS - O texto não foi revisado pelo autor.