Cinema como agente histórico II: utopias, distopias contemporâneas
Nesta
semana fomos brindados e presenteados com dois exemplos, bons, de filmes
antípodas, mas que se retroalimentam o tempo inteiro para tratar de dois tempos
humanos quanto à sua vivência e convivência, qual seja, a utopia e não utopia –
redundante? – ou seja, a distopia. Aproveito o ensejo para felicitar nosso
professor da disciplina pela feliz indicação de leituras fílmicas e na
sequencia sugerida para assistirmos. São eles, O Invasor, de Beto Brant e
O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho.
Se
no primeiro filme somos conduzidos, arrastados, atropelados pela invasão não concedida,
tendo em vista o convite feito por uma das partes, ao ser protocolado um negócio, o qual vamos ver que se desdobra e
redobra para dentro de si; no outro, temos o lugar “sossegado” de uma gente que
pensa estar imune ao que a rodeia, apesar do “som” permanente, diário. Essa
sequência de exibição é que vai provocar ainda mais no
estudante/leitor/pesquisador uma ansiedade não saciada de lugar em constante
ebulição, mesmo que esta efervescência seja perceptível, ou não.
Buscando
nossos referencias filosóficos quanto aos termos destacados na semana, vimos no
dicionário de Nicola Abbagnano e também explorada pelo nosso professor, que utopia
trata-se de um nome dado a uma ilha pelo escritor Thomas Morus, na qual a vida
beirava à perfeição. Entretanto, muito antes dele, o filósofo Platão também
“criaria” um modo de vida na cidade, mesmo sem nomear como utopia, mas que
preconizava uma sociedade nos moldes estabelecidos séculos após por Morus.
Quanto
ao termo Distopia, não é encontrado em Abbagnano, e seu surgimento ocorreu
séculos depois de Morus criar seu romance político, exatamente para designar
uma vida contrária à vista ali em A Utopia, isto é, a vida distópica passou a
ser aquela em que a elaboração humana não conseguia promover o bem estar de
toda a sociedade, principalmente pela força da opressão do poder contra a
população, simplificadamente falando.
Beto
Brant nos traz a “vida” da nossa metrópole, São Paulo, no microcosmo da empresa
de Ivan, Gilberto e o terceiro sócio, vítima da ação nefasta daqueles dois, cuja
narrativa não nos esclarece a razão por que os dois o mandam matar. Deduz-se
pela diegese que o sócio assassinado descobrira “algo de podre no reino da
Dinamarca” daquela sociedade empresarial. A vida cheia dos prazeres e das benesses que as famílias dos
sócios dispunham, advindas do trabalho e das relações políticas da empresa, criavam
uma aura de vida perene para além da normalidade, ou como dizem por aí, uma
vida para além daquelas vividas pelos simples mortais. Entretanto o nosso
ímpeto não disciplinado, domesticado, pode criar uma ou mais situações que desmoronam
qualquer construção, por mais alicerce que ela tenha. Eis que a vida normal é
atropelada, é invadida.
A
câmera em O Invasor era rasteira, horizontal, valorizando o olho no olho, a
rua, o movimento dela, que mesmo sendo em São Paulo não tivemos tempo para os arranha-céu,
para as buzinas dos automóveis e seus intermináveis congestionamentos. Vimos e
ouvimos cores fortes, misturadas, vimos e ouvimos músicas da periferia,
diegeticamente ou não. Destaco duas cenas que ilustram a invasão e que
desencadeia a distopia, simultaneamente: o momento em que Anísio, o matador,
adentra o escritório da empresa pela primeira vez, não mais para receber ordens
para matar outra pessoa, mas para ser o novo sócio, à maneira dele, daquele
escritório. O segundo momento é quando Ivan, o sócio arrependido, mandante do
crime, que ao se entregar à polícia tivera a sensação momentânea de estar a
salvo, mas descobre que fora devolvido aos agora algozes, antes parceiros dos
crimes do próprio sócio.
Mas
o passado te condena. Foi assim com um “ilustre” morador e “dono” de uma rua da
cidade do Recife vai nos revelando/descortinando aos poucos, mas a dica foi
deixada no início da película quando fotos do canavial e sua gente que manda e
também que trabalha, são expostas. Até mesmo o ilustre Gilberto Freyre(ou é
alguém bem parecido?) dá o ar da graça nessas fotografias, aliás, signo de
poder em tempos não muito remotos, o de ter fotografias em casa: político e
econômico.
Nada
mais desejado para grande parte da população o de viver em tranquilidade, mas nada
que está posto é garantia de suavidade, de perenidade...é o que vemos e vimos
em O Som ao redor. O cotidiano nos rondando, sorrateiramente, sendo parte da
casa, da rua, da rotina. Os sinais do passado reaparecendo, insistindo em
aparecer, forçando a porta, delicadamente, mas forçando.
Ali
no chão do Recife, parafraseando o poeta da musica pernambucana, com referencia
moscovita, o Lenine, a vida pulsa, mesmo que de modo transverso, estando o
passado também ali. E por isso, devagar, sem ser monótono, Kleber Mendonça
Filho nos apresenta um passado presente e, delicada e discretamente, temos um,
dos dois filhos de Antonio, também assassinado a mando, por Francisco, a olhar
para o quadro exposto na parede da sala. Um olhar à sua direita, por sobre o
ombro, mas percebido pelo permanente usineiro, grileiro de terras de massapê.
Nesta
oportunidade, a empresa não existiu, mas os interesses espúrios de um,
representante de uma família poder, destruiu a vida simples de uma família que
vivia o seu mundo simples, a qual teve a infelicidade de fazer-se cruzar a vida
de um latifundiário e usineiro, dono, dono, dono.
As
cadeiras caem e no festim da família remediada, ao lado, os cães fogem e eles
sorriem...por que o som ao redor os incomoda.
À
guisa de conclusão e de analogia temos dois mundos possíveis no cinema nacional
contemporâneo, sendo um representante do eixo político e econômico que perdura
há 03 (três) séculos, tratando de um lugar comum, estes poderes naquele lugar.
O outro, um locus que “desponta” para o poder, fazendo uso de uma paisagem
fílmica também não comum. Desse modo, e a partir do exposto, apesar de que me faltam
maiores e mais aprofundados elementos, momentaneamente, mas faltam-me,
parafraseando uma das nossas interlocutoras, a pesquisadora Lúcia Nagib, considero
que o cinema brasileiro alcançou o seu projeto utópico, esteticamente falando.