quarta-feira, 30 de janeiro de 2019


As coisas e os corpos fora, do lugar(?) Uma leitura de Boi neon, Gabriel Mascaro, a partir da leitura do filme e de uma conferência on line do prof. Fabio Zoboli, da Universidade Federal de Sergipe, dentro da 1ª Jornada de Cinema promovida pelo Instituto Sophia Scientia





O destino a que será que se destina! 


Esse é o fio condutor da narrativa desta película ambientada no agreste brasileiro, no semiárido, mais precisamente no Estado de Pernambuco.
Trata da trajetória de 03 Personagens fora do lugar: uma criança que convive somente com a mãe, que é motorista de caminhão transportando bois; e Iremar, guardeiro dos bois, mas que se declara vaqueiro, e cujo sonho maior é ganhar a vida como estilista, portanto vidas em comum na itinerância.   Eis é o quadro que se descortina em meio ao escândalo do cotidiano da vaquejada, um “esporte” maldito que impera em quase todos os Estados do Nordeste brasileiro.
Um dos destaques do filme é a lentidão em alguns momentos cujas cenas se desenvolvem o que pode provocar o enfado no espectador mais desatento. Dentre elas destaco a da transa entre Iremar, o vaqueiro, e vendedora de cosméticos, pelo dia e vigilante de uma fábrica, à noite. 
Voltando ao trio central da narrativa: durante a trajetória daqueles três personagens destacados no início do texto, elejo  a criança, Kaká, que sem constrangimento vive o mundo adulto da vaquejada, realizando tarefas do cotidiano e participando inclusive dos conflitos deles, como no episódio em que Iremar reclama com ela para não ficar no caminhão no momento em que chega o substituto de Zé, outro guardeiro, que é convocado pelo fazendeiro a fazer parte de outro grupo também de vaquejada. Nesta sequência temos a revelação de um suposto relacionamento amoroso entre Iremar e Zé, "denunciado" pela criança. Nessa mesma sequência também constamos a força de controle que o fazendeiro tem sobre seus supostos funcionários.
Destaco ainda a pequena presença de uma trilha sonora, apesar de ouvirmos músicas em diversos momentos do filme (o que é compensada pela fotografia a qual nos redime da pequena presença da musicalidade). Parece contraditório, mas explico: quando me refiro à trilha sonora pequena, faço referência ao substantivo trilha,  isto é, um elemento da narrativa que sem diálogos nos conduz enredo a dentro. Já a música aqui e outra ali, nem sempre traduzem essa situação, de conduzir na trilha, que é parte do enredo, da narrativa.
Por fim, como se selasse o destino de nosso personagem principal, vemos o vaqueiro em sua lida diária, cuidando do gado na cena final.
É um filme que tem muito mais a ser dito e que ao ser visto precisa de uma  boa dose de cautela para não ser considerado enfadonho, cansativo. Sugiro que prestem atenção na letra da canção que acompanha os créditos da película, que não tem a linguagem rebuscada, mas tem a profundidade que uma obra de arte deve possuir.


domingo, 27 de janeiro de 2019

Aquarius, a vida em sua plenitude



Ao tomar conhecimento do filme Aquarius à época do seu lançamento, fiquei fascinado pelas poucas, mas elementares informações sobre a película, a saber: ser protagonizado por Sonia Braga, nossa musa televisiva e cinematográfica dos anos de 1970-80, ser ambientado em Recife, mais precisamente na praia de Boa Viagem, capital pernambucana, um dos pilares da nacionalidade e o próprio nome que deu o título ao filme, que remete à beleza de um aquário, mas sempre sendo aprisionamento. Todo esse conjunto me instigou a assisti-lo, o que consegui somente ontem, mas vi. Vamos a alguns detalhes que elenquei dentre as inúmeras possibilidades de destaque.
E o primeiro, dos muitos encontros que virão (quando o filme é bom revejo-o algumas vezes), me revelou agradabilíssimas surpresas: Hoje
Trago em meu corpo as marcas do meu tempo;
Trago no olhar imagens distorcidas; Homens de aço          esperam                da          ciência; Eu desespero e abraço a tua ausência
Que é o que me resta, vivo em minha sorte...  
Eis um pouco da minha deliciosa surpresa, ouvir,  Taiguara, ao tempo vejo as imagens em preto e branco, a posição das sombras dos coqueiros no calçadão da praia e as imagens aéreas.
Vivendo a personagem Clara, Sonia Braga, realiza com maestria a personagem central da trama: uma mulher livre, discreta, firme, destemida, corajosa, tendo superado um câncer de mama e viúva, mas nem por isso deixando de viver a vida intensamente.
Mas a trama não é uma biografia da personagem, apesar de todo o filme ter como epicentro a vida dela, é antes de tudo um conflito entre a força destruidora, avassaladora do capital, com seu personagem real, a especulação imobiliária, que a todo e qualquer custo quer destruir, derrubar, literalmente, o edifício onde a nossa personagem principal reside desde que nasceu e onde continuou vivendo após seu casamento. Em  meio a esse conflito que não é de classe, mas de interesses de pessoas, de gente do mesmo convício social, afinal Clara pertence à classe média alta, somos conduzidos pela memória afetiva e cultural daquele microcosmo social. É nesse instante, quando abordamos as relações sociais de Clara, que nos deparamos com um rico e competente elenco majoritariamente pernambucano nos mostrando um outro Brasil, sem ser piegas ou paroquiano.
Destaco as cenas em que nossa protagonista vê e sente a presença de outros personagens já falecidos e pertencentes à trama: 1. Supostamente o marido, após ela transar com um garoto de programa dentro da própria casa e, 2. a empregada que rouba as joias da casa. Nessa segunda situação lembremos da cena em que uma das amigas de Clara, após esta ter dito do roubo dos pertences, que as patroas sempre exploraram as empregadas, então o roubo praticado é uma forma de compensar esse desvio à legislação trabalhista.
Eis alguns detalhes desse memorável filme e advirto: quem quiser ver algo sobre a cidade do Recife não perca seu tempo, pois ali você verá uma narrativa sobre a gente que sente, que ama, que protege, que lembra e que respeita a vida em sua plenitude. E assim volto aos versos de Taiguara para concluir meu texto
Hoje/ Homens sem medo aportam no futuro/ Eu tenho medo, acordo e te procuro/ Meu quarto escuro é inerte como a morte

Mas Clara reage...............

Marcos José de Souza
Domingo, 27 de janeiro de 2018
Às 10:01h
Fátima, Bahia

O texto acima é uma tarefa da 
1ª Jornada Virtual do Instituto Sophia Scientia.

domingo, 6 de janeiro de 2019


O ACONTECIMENTO EM OS SERTÕES - UM JORNALISTA, UM SOLDADO, UM FENÔMENO.

O texto  abaixo faz parte de um artigo científico elaborado para fins avaliativos da disciplina ESTUDOS EM FILOSOFIA E LITERATURA, ministrado pelo Prof. Dr. Cícero Bezerra Cunha da Universidade Federal de Sergipe, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras, onde sou aluno especial, isto é, aluno que teve o direito de cursar dois semestres, sem vínculo institucional com o Programa. O texto que ora torno público é uma análise de um episódio que ocorreu com Euclides da Cunha e à luz da Filosofia do Acontecimento é visto como um momento em que o espectador de um dado episódio tem uma reação em que percepções e afecções são produzidas em quem vê algo , transformando a visão, o ponto de vista, a partir desse encontro que dá-se o nome de ACONTECIMENTO, que não pode ser confundido com evento, o qual é premeditado, o que não se vincula ao acontecimento.
Aguardo comentários.
Boa leitura.
Um abraço.
Parte II – O acontecimento em O Sertões, de Euclides da Cunha: primeiros apontamentos

Ao ser designado como correspondente de guerra para cobrir o conflito entre patrícios que ocorria no semiárido baiano, Euclides da Cunha já havia se apropriado de informações sobre as motivações que levaram o povo do norte do Brasil a se rebelar contra a recém-instalada República, com a redação de dois artigos para jornal supracitado. Eis o germinal do livro monumento, nas palavras de Joaquim Nabuco, que marcaria para sempre a Literatura brasileira, lançada em 1902, cinco após o fim do combate em terras baianas.
Como repórter do jornal A Província de São Paulo, o Engenheiro e Militar, Euclides da Cunha desloca-se para o palco da guerra e demonstra sensibilidade aguçada para o conhecimento, para o saber e para tal faz pesquisas em Arquivos Públicos, em Bibliotecas, realiza entrevistas com soldados que vão e voltam da guerra e com civis, também sujeitos do combate. Durante sua estada no palco da guerra, Euclides permanece mais tempo no quartel general do Exército, no município vizinho de Monte Santo, distante 6 léguas, registrando em seus blocos de notas, cujo teor é enviado a São Paulo por uma estação telegráfica instalada somente por causa do conflito bélico. Vai aos arredores de Belo Monte, esse era o nome oficial da vila recém fundada por Antonio Conselheiro, líder do lugar. Mas o nome que fica para a posteridade é Canudos em face de que no local havia uma sede de fazenda, mas abandonada, a qual recebia esse nome.
Perspicaz, Euclides guarda para si as anotações, pois fica sabendo que as notícias por ele enviadas não são publicadas na íntegra, causando deturpações na veracidade dos fatos e dos relatos. São essas anotações, com futuras pesquisas, que vão formar o livro Os Sertões, considerado obra-prima da Literatura Brasileira e Universal, sendo objeto de estudo em diversos países europeus. De imediato, causa impacto pelo léxico utilizado, pela sintaxe e estilo atribuídos, uma vez que ele não faz um relato “cru” de um conflito bélico e seus tradicionais resultados: mortes, tiroteio, combates diretos, emboscadas e etc. Entretanto faz um estudo detalhado do lugar, do homem que habita aquele lugar e enfim o próprio conflito. Chamando a atenção para o uso rico de metáforas, antíteses, comparações e análises tanto do lugar, quanto do homem e do próprio conflito. Daí ser considerado um livro que passeia pelo ensaio cientifico geológico, botânico, antropológico, político e sociológico, mas não “deixa” a literatura devido ao modo como as palavras, a linguagem, a sua materialidade é tratada, lapidada, transformada. É também herdeiro do Positivismo, ciência dominante nos meios acadêmicos da época. É um livro que emociona sob diversos aspectos.
A densidade do livro, aliada ao quantitativo de informações ali contidas, exige de quem se propõe a estudá-lo a ter que sacrificar-se para a escolha desse ou daquele detalhe, por  isso elegemos um subtema, “morte” para entendermos o acontecimento em sua obra, destacando somente aquele em que o escritor se depara com um soldado morto. Esse episódio é descrito na primeira parte do livro denominada O Homem, porém o autor não deixa de nos apresentar ao conflito desde as primeiras páginas, pois esse é o “assunto” principal do seu livro.
Uma das características mais marcantes de os Sertões diz respeito ao modo de deslocamento no espaço do próprio autor/ protagonista do seu ensaio “antropoético” é a condição de andante, seja a cavalo seja a pé, predominando esse último modo.
            Em meio às variáveis narrativas – espaço geográfico, pessoas (não são personagens os sujeitos do seu texto, mas gente com vida real, não ficcional), os episódios – destacamos uma das mais marcantes e predominantes em um conflito bélico: a morte. Euclides nos apresenta esse momento da vida de diversos modos e ocorrências seja individual ou coletivamente, entre e interfamiliar, civis e militares. Por isso elegemos um desses momentos em que cansado do canhoneiro, o próprio autor revela um enfrentamento de si com o outro num misto de desvelamento, de mudança aparente do ponto de vista político (o autor/narrador tinha uma opinião contrária ao conselheiro e sua gente antes de chegar ao palco de guerra, ainda em São Paulo, quando escreveu os artigos para o jornal que o contratara como repórter dessa mesma guerra, como afirmamos acima). No seu estilo o autor sempre tem à mão para criar suas frases, seus parágrafos, os elementos naturais, transformando-os em poesia: o sol que sempre brilha e esquenta, o ar seco na maior parte do dia; e a flora ressequida, agressiva, mas colorida e aromática; os pássaros, os bichos rasteiros. É nesse cenário natural e não–fictício que se dá aquele momento em que perceptos e afetos incidem sobre os escritos e personagens reais: a visão de um soldado morto, isolado cujo trecho recebe o nome de “Higrômetros singulares”. É o próprio homem que mede a humidade do ar em seu corpo, em sua pele, dando-lhe ao ar, à paisagem, a vida:

Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneiro frouxo de tiros espaçados e soturno, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham circulando num vale único. Pequenos arbustos, icozeiras virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sombreando a vegetação franzina.(CUNHA, 1998, p. 37-38)

            Esse trecho vai nos envolvendo e anunciando uma surpresa. Notemos que os verbos que se referem a um sujeito humano estão no primeiro período, mas nele o objeto primeiro não aparece, a flora do lugar com aparência de um velho jardim e como se não bastasse, abandonado. Nada mais, nada menos que o similar de um cemitério sem cuidados, ou também abandonado. Entretanto a flora rasteira tem uma companheira, uma frondosa árvore verde impondo-se àquele lugar desprezado, configurando alguns contrastes e antíteses como seco X verdejante, e, o mais pertinente ao “clima” criado pelo suspense abandono X vigília   e  vida X morte.
            Após esse preâmbulo, poeticamente o narrador se depara com o bizarro:
            O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava.(idem, p. 38)
            Este acontecimento provoca em Euclides – narrador e escritor – um “compadecimento” político, pois sem esquecer do modo como aquele “soldado” fora obrigado a participar da guerra, deixando a própria família à mercê da própria sorte, vê nosso analista que a solidão da morte livrara-o de ser enterrado em uma vala comum, misturando-se a muitos outros. “...o destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade de lúgubre de um fosso repugnante...” (ibidem.)
            Enfim descreve Euclides como o corpo daquele soldado tornara-se um medidor da umidade dos ares.

E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conversando com os traços fisionômicos, de modo a incluir a ilusão extra de um lutador cansado, recuperando-se em tranquilo sono, a sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme – o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria – lhe maculares os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho, revelando de modo absoluto mas sugestivo a secura extrema  dos ares ( idem, ibidem – grifo nosso).

            Mais uma vez sentimos as antíteses postas por Euclides cuja maior delas é vida x morte, é a morte superada pela vida, entretanto mesmo sem vida, a morte não apodreceu; mesmo sem respirar, parecia um lutador cansado; mesmo morto, à sombra, o verde da quixabeira devolvia-lhe a vida; intacto estava o soldado morto que murchara, mumificara-se transformando-se em higrômetro, estranho, inesperado e bizarro.
            E assim vai tecendo a sua costura, o seu bordado, a sua tela naqueles paragens o nosso ensaísta, na função do repórter de guerra, literalmente entre a vida e a morte de brasileiros que se enfrentaram em uma guerra fratricidas ocorrida no final do século XIX cujos relatos transformados em livro marcaram para sempre a literatura brasileira sem,  no entanto, ser o próprio autor, um homem de ação política. Apesar disso revela ao Brasil e ao mundo, outro Brasil, outro mundo possível, o de que aquele país do final do século XIX não era restrito ao litoral.
           


Concluindo...
Parafraseando o prof. Cícero Bezerra, em artigo sobre Um sopro de vida, de Clarice Lispector, quando ali vê o professor que diante da escrita a personagem é tomada por estado de “graça”  ou “dom” que irrompe e, como sendo um acontecimento, irrompe no íntimo da personagem exigindo um relação com o outro, surpreendentemente, instantaneamente. Do mesmo modo temos o acontecimento de Euclides, escritor, narrador e personagem ante a visão real do soldado morto, um acontecimento, não como graça ou dom, mas como força que emerge de dentro para fora, transformado em emoção de piedade- personagem; sensação de abandono – narrador; comprovação de desprezo pelas autoridades – escritor. É a escritura de um texto não mais hibrido, mas triplo envolvendo personagem, narrador e escritor. Eis Os Sertões, o livro vingador.










REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEZERRA, Cícero Cunha. Clarice Lispector: escrever para se livrar de si. O Eixo e a roda revista de filosofia, Belo Horizonte, v. 24, n. 2, p. 157-172, 2015.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões, campanha de Canudos. Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ática, 1998.
ROJAS, Alonso Silva e SERRANO, Jorge Francisco Maldonado. Filosofía y Literatura em Deleuze y Guattari: creación y acontecimiento. Práxis Filosófica Nueva serie, Universidad Industrial de Santander, n. 45, p. 171-202, julio-diciembre 2017