quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

 Há algumas semanas que venho tentando escrever esse último texto para 2020 que versa sobre o filme PACARRETE, de Allan Deberton, tendo com estrela e protagonista, a grande Marcélia Cartaxo.



PACARRETE, ENTRE O RISO E CHORO DO ARTISTA...E DO TELESPECTADOR: A GARRA DE QUEM PRECISA DIZER, GRITAR, DANÇAR, PARA SER O QUE SEMPRE FOI

Esse filme foi visto na companhia do meu querido Ariel, meu filho mais novo, quando em Salvador estivemos para um breve passeio em alguns do ícones daquela cidade da Bahia. Visitamos a Igreja do Bonfim, almoçamos no Mercado Modelo, com vista para a Baia de Todos os Santos e fomos ao Espaço Itáu Cultural onde vimos e nos emocionamos com Marcélia Cartaxo, Pacarrete e o povo de Russas-CE, como figurantes.

O filme trata da vida de uma professora de ballet, que trabalhou em Fortaleza, mas sendo natural de Russas, após a aposentadoria, retorna à terra natal. Vive com a irmã, Chiquinha, e uma amiga, Maria, que faz as vezes de doméstica. A irmã está doente e vive em cadeira de rodas, sendo este o motivo, segundo a professora de ballet seu principal motivo para voltar a Russas. Vive um amor dito platônico, por Miguel, casado, dono de um bodega, com moradia próxima à da professora de ballet. A cidade vive  às vésperas das comemorações do seu bicentenário e Pacarrete.......quer fazer parte dessa festa, pronto, a celeuma foi armada

O impacto inicial dá-se na primeira cena na qual Pacarrete, toda em um vestido colorido com o vermelho em destaque,  mostra seus dotes artísticos ao lavar a calçada de sua casa, cantando com música cuja fonte de emissão do som não aparece em cena. E enquanto dança, lava, briga com os passantes que pisam sua calçada...

Pense numa cena empolgante em que essa foto acima indica um pouco....
Mas a vida de um artista que quer e precisa ser reconhecido, a vida de um artista em fim de carreira que precisa mostrar que sabe o que soube fazer a vida inteira, a vida de um artista formado em escolas ditas como de alto nível artístico em meio à pestilência da indústria cultural e do empresariado atual, a vida de um artista...a vida de artista...
Em meio à vontade de mostrar para seu povo, o de Russas, que ela é uma artista do lugar, vai ao encontro do Prefeito, do Secretário de Cultura de Russas, mas não consegue
Pra piorar sua vida de moça de "casa", perde uma pessoa querida

Pacarrete é um filme para rir e pra chorar...é um filme de artista para artista...é um filme de choque de gerações...é um filme que nos diz também: somos condenados à civilização. Duas das grandes cenas, dos grandes momentos da narrativa estão na foto abaixo, a outra, da morte de Chiquinha, fica para quem for ver o filme e curtir a emoção


Com um encerramento brilhante Pacarrete me marcou profundamente...me emocionou muito e amei muito mais  a partir das entrevistas do diretor, o Allan Deberton. Assistam...será um deleite ouvi-lo e, principalmente, ouvi-lo sobre Pacarrete, do filme e de vida dele


créditos das imagens, por ordem de exposição:
outraspalavras.net
adorocinema.com
adorocinema.com
cineset.com.br
oxereta.com

PS. Texto não revisado pelo autor. bjs




quarta-feira, 18 de novembro de 2020

 

Onde e o que pode uma criança cega estudar? Experiências, aprendizagens, e ensinamentos em Vermelho como o céu.

 

Rever Vermelho como o céu, ou Rosso come il cielo, de Cristiano Bortone, de 2006, é sempre um mergulho nas nossas possibilidades, das impossibilidades a nós impostas pela escola, pela família, pela sociedade – é uma tríade por demais conhecida, um chavão, mas que infelizmente ainda nos domina. Vermelho como céu pode ser um filme sobre a infância, sobre escola para meninos ainda na transição da infância para a adolescência, sobre escolas com regime de internato, sobre escolas religiosas, sobre escola para meninos cegos, enfim. E é isso tudo e muito mais, pois além desses “subgêneros” temos um filme em que a aprendizagem a partir dos sentidos em pulsação ao extremo, o companheirismo, o amor, enfim está presente até do início ao fim da narrativa.


cinepedagogiace.blog.spot

 

Mirco Balleri é um garoto comum que brinca nas campinas da Toscana, mas após um acidente doméstico com arma de fogo, teve sua vida modificada ainda mais: agora sem enxergar quase nada, teve que estudar em uma escola para crianças cegas(meninos), em outra cidade, no regime de internato. Isto é, agora sua vida estava restrita à convivência com quem não enxergava – ou enxergava muito pouco – com os olhos.

E é este detalhe que indico no final do parágrafo anterior – e já visto em texto também anterior de nossa autoria sobre o filme Janela da alma – o individuo é dotado de 5 sentidos, por que não explorar todos? Na ausência de um deles, ainda teremos mais 4, é esta, uma das mensagens que Mirco nos comunica.

A amizade é um dos grandes trunfos do nosso protagonista, pois é com ela que ele desenvolve seu potencial criativo, e com este potencial, despertar no professor a coragem de agir politicamente dentro da instituição, em favor da liberdade criativa dos estudantes. Adiante volto a este professor, também padre, por ora, vamos nos concentrar na amizade. 

Cinemaescrito.com 

Em suas primeiras semanas de internato os aprendizados e os ensinamentos que nosso protagonista alcança são de encher nossos olhos, nossos corações, nossa alma, sempre com a conquista de amizades, cuja primeira é com Felice, a segunda, Francesca, não interna, até angariar uma legião de amigos admiradores.

Aliás do início ao fim da narrativa fílmica temos muitas e suaves emoções, cujo ponto alto é quando os estudantes fazem a festa de final de ano a ser apresentada aos familiares. Na entrada todos e todas recebem uma fita preta. Ao sentarem-se o padre e professor pede que todos usem a fita vendando os olhos, e o que se vê é uma plateia alegre e feliz por ter “percebido” sentido o que viver e poder viver sem “ver”, mas enxergando, sentindo...

                                                                                                    lounge.obviusmag.org

A apresentação da classe é uma encenação de uma história criada por Francesca, sua grande amiga.

                                                                lounge.obviusmag.org

Enquanto a peça é apresentada, imagens do internato são intercaladas, com uma música uma belíssima, sob a responsabilidade de Ezio Bosso e Stefano Campus e fotografia, de Vladan Radovic. Vale ressaltar que ali e em diversos momentos, esse recurso e elemento cinematográfico presenteiam os espectadores sempre de maneira sublime, outras vezes, agressiva, mas sempre significativas, nunca incólumes.

Mas voltando ao episódio do padre e professor, o Don Giulio, apesar desses títulos, era um homem que primava pela fantasia dos seus alunos, como se diz imaginação em italiano, e que tanto admirava a capacidade criativa dos seus meninos. E foi movido por esses “detalhes” que juntou forças e enfrentou o diretor da escola o qual se orgulhava do século de vida que ela alcançara, principalmente por que obedecia às regras.

Devido às criações, más criações no olhar da direção da escola, Mirco foi expulso do internato pelo, mas o professor enfrentou o chefe e exigiu a permanência do garoto e ainda que a festa de final de ano seria, daquele ano em diante, seria organizada por ele, a pessoa mais indicada, pois era com quem os meninos tinham contato diário como professor-aluno. Mas em qual momento o padre e professor reuniu forças? Com uma conversa que teve, em pleno corredor da escola, com a faxineira e faz tudo do lugar, Concettina. Como pode um padre receber orientação de alguém subalterno? Parar para ouvir alguém hierarquicamente inferior? Somente vendo Rosso come il cielo

É um filme para a família, mas principalmente para os vizinhos, a comunidade ver....com todos os sentidos: ver para ouvir, ver para cheirar, ver para degustar, ver para enxergar, ver para sentir..... Somente vendo Rosso come il cielo

E em meio aos debates a respeito da legislação que trata da introdução do cinema nas escolas brasileiras, mais especificamente do cinema brasileiro na educação básica, isso nos idos de 2014, com a lei 10.006. São duas horas mensais mínimas de exibição de filmes nacionais. Por que essa digressão? Somente vendo Rosso come il cielo

Em meio há mais uma estupidez do atual governo federal que quer “incluir” crianças como Mirco e seus amigos de internato, em escolas com crianças com suas necessidades, sugiro Rosso come il cielo....



Eis aqui um dos canais https://www.youtube.com/watch?v=yvd9R30hNqk&ab_channel=VanderleiMedeiros

 



sábado, 14 de novembro de 2020

 ver para enxergar - ou seria o contrário?, enxergar para ver?


                           


 

Inicio meu texto informando que ele foi produzido tão logo acabei de ver o filme Janela da Alma, de João Jardim e Walter Carvalho, 2001, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=4F87sHz6y4s&t=2s&ab_channel=Mir%C3%A1Filmesproduzido pela Copacabana filmes e produções, Ravina filmes e e Dueto filmes, acessado na noite de hoje, noite em que produzo esse brevíssimo ensaio/comentário. Portanto é um texto produzido no calor da hora e, com os riscos de esquecer de muitos dos detalhes e dos/das participantes, mas assim o quis fazer.

O filme é um mosaico de depoimentos que versam sobre o papel fundamental e profícuo da ausência da visão promovida pelos olhos, isso mesmo que você leu, o filme traz em seu cerne, em suas imagens, falas e cenas, a vantagem de não vermos, uma vez que já diz o velho dito popular, o essencial é invisível aos olhos. Hoje tive mais uma vez essa comprovação ao ver (ou rever?), Janela da Alma. Viram a minha dúvida? Vi, mas não mais sei se o vi. Por que será que tenho essa dúvida?

Sei que nos áureos tempos da TV BRASIL, denominada a tevê do Lula, vi em diversos programas, bons programas por sinal, reportagens sobre esse filme, disso tenho certeza, viram agora a minha certeza? Por que será que tenho esta convicção de ter visto reportagens sobre o próprio, mas nenhuma se vi o próprio filme? Somente vendo Janela da Alma para sabermos porque aqueles que não enxergam, com os olhos, afirmam que não precisam dos olhos para ver. E por que não termos certeza de termos visto algo mesmo sendo dotados da visão, isto é, de “enxergarmos com os olhos?”

Com depoimentos de gente como José Saramago, que dentre várias pérolas ditas (esta não me fugiu à memória): estamos vivendo a caverna de Platão nos tempos atuais, o filme é de 2001, portanto lançado há 19 anos e, continua o escritor português, viveremos ainda mais esta caverna, mais adiante, afinal tudo é propaganda, tudo nos envolve para um mundo que não nos pertence, que não é o mundo que imaginamos ser. Fiquei perplexo com mais essa do gênio portuga. Dona Isabel de seu Porfírio adorava essa palavra “perplexo” e eu amava essa paixão dela.



Mas temos muito mais: Manuel de Barros, que com sua verve cômica, solta uma das dele; os cineastas Wim Wenders e Agnes Varda -que contam histórias belíssimas, destaco aqui a dele: que até as crianças ao pedirem que os contem uma história, estão, na verdade, querendo outro mundo. O poeta Antonio Cícero, a atriz Marieta Severo. Outros que não consegui memorizar o nome dão testemunhos maravilhosos, daqueles que nos deixam, mais uma vez: perplexos, ou como se diz no sertão: de “bocaberta”, “bêstas”....

Por fim destaco a primorosa presença do panmúsico Hermeto Pascoal, do qual dentre as pérolas, destaco a seguinte: ouvimos pela nuca e enxergamos pela testa, em um ponto entre os olhos e acima um pouco deste, centralizadamente.

Quanto a algumas imagens, elas são muito coloridas e se mexem feito uma cortina que foi balançada de leve; entre um quadro e outro, a tela fica escura para que, aos poucos, as cores comecem a aparecer, com pontos luminosos, numa tentativa de se aproximar ao que dizem aqueles e aquelas que não enxergam conseguem “ver”. Atentem para os detalhes dos locais onde cada um/uma fala, o som que aparece, desde a música a um ruído qualquer!

Janela da Alma é um filme que deve ser visto, várias vezes, inclusive com a tela escura em uma das sessões; em grupo e isoladamente; e ainda em uma das exibições, serem anotadas as máximas filosóficas ditas pelos participantes com seus testemunhos abissais!!!! Não deixem de ver! Todos e todas – sem distinção.

 

diretor João Jardim

                                                     diretor Walter Carvalho

 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

 

Zero de conduta, Jean Vigo, 1933, França.





A presença da Educação no cinema, principalmente o cotidiano da sala de aula, ocorre desde o início da sétima arte. Hoje nosso dialogo será com um filme produzido nos anos de 1930, mais precisamente em 1933, portanto 40 anos depois do “surgimento” do cinema, numa fase já consolidada com a marca de “escolas cinematográficas” em vários países, trata-se de Zero de Conduta, dirigido pelo francês Jean Vigo.

Zero de conduta apresenta um internato para meninos, destacando um quarteto desses garotos que sempre chamam a atenção da direção do estabelecimento por não cumprirem as ordens da casa, as quais, vamos conhecendo, são opressoras e, portanto, limitadoras das ações pertinentes à infância e à adolescência. Na trama, os personagens estão às vésperas de uma comemoração cujo nome não é revelado.

Na instituição de ensino constatamos diversas agressões aos internos, em face da postura autoritária dos professores e dos demais componentes da gestão escolar. À exceção de um deles, o qual com sua postura, lembra algumas prerrogativas do professor Paulo Freire em seu livro Pedagogia da Autonomia. Trata-se do prof Huguet, novo no estabelecimento, e pela prática não autoritária, opressora, não é bem visto pela direção e inspeção escolares. Este professor permite que os estudantes tenham autonomia, trabalha com alegria, participa com eles e sabe ouvi-los. Em dos momentos, o prof Huguet vê um aluno “plantar bananeira” em plena sala de aula e em seguida imita o estudante.

A narrativa proporciona a vitória aos estudantes revoltosos, quando os dirigentes do internato estão em plena comemoração organizada pela própria instituição, o que a nosso ver, não seria comum à época, 1933: a vitória da revolta estudantil. E essa “vitória” começa na véspera da festa, quando os líderes incitam aos demais colegas à não participação na comemoração, ao promoveram “uma brincadeira” conhecida como guerra de travesseiros. Um detalhe dessa sequência é que ao final dela temos alguns segundos em câmera lenta: a alegria tomou conta de todos os meninos. Um instante poético da narrativa criada pelo diretor, Jean Vigo.

Outro detalhe é que enquanto o inspetor, anão, fala ao professor Huguet, da necessidade da escola realizar uma festa digna da presença do governador, imagens da guerra de travesseiros se alternam à reunião. O fato de colocar um anão como inspetor e de ter escancarado sua visão sobre os horrores de um internato, podem ter custado muito caro ao diretor.

No dia seguinte, dia da comemoração, o quarteto dos líderes não aparece no momento da festa, pois todos estão arquitetando ‘’o ataque”, o que ocorre ao jogarem do alto da escola, latas, pedras e outros objetos. Alegres, os quatro meninos andam pelo teto onde está uma bandeira “do movimento” por eles organizados, enquanto os colegas, em baixo, comemoram, e as autoridades ficam confinadas no porão.




O filme não mostra uma nova forma de narrativa, mas seu diferencial reside nessas novidades apontadas e serve tanto como referencial fílmico de modo amplo, quanto temático. Destaco como inovações político-estéticas o protagonismo juvenil, e não somente de um ator, mas de 04(quatro) deles e ainda o uso de ambientes externos, inclusive a rua, alternando com internos.

as imagens foram retiradas dos sites,pela ordem:

radarconsultoria.com

adorocinema.com

bheventos.coom.br

velhaonda.com

cinefrance.com.br

terça-feira, 15 de setembro de 2020

 

Cinema e História, Marc Ferro. Tradução Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1992.

 

Ao ser apresentado a este pequeno, fecundo e fundante livro – este último adjetivo com destaque para o autor desse texto – pelo meu querido amigo e atualmente meu professor da disciplina Cinema e História, o Prof. dr. Hamílcar Dantas, no Mestrado Interdisciplinar em Cinema pela Universidade Federal de Sergipe, tive a agradável surpresa de ler um dos mais leves textos teóricos, mas sem deixar a profundidade de análise, que une o prazer do Cinema com o vasto campo do conhecimento histórico. O objetivo do livro é mostrar como o Cinema pode, e deve ser considerado, fonte histórica, independentemente se a produção é um documentário ou uma ficção.

Dividido em 14(catorze) capítulos de tamanhos e anos de produção diferentes, Marc Ferro vai analisando filmes históricos, sem fazer menção a este adjetivo, produzidos na URSS (alguns na Alemanha) cujo tempo cobre 05 anos de produção entre o primeiro, de 1971, e os últimos, de 1976. No índice, o primeiro texto está entre os mais novos, feito para apresentar o percurso metodológico e analítico cujo titulo é Coordenadas para uma pesquisa. Nele o autor constroi algumas teses, apresentadas pelo seguinte trecho: Entre cinema e história, as inferências são múltiplas, por exemplo: na confluência entre a História que se faz e a História compreendida como relação de nosso tempo, como explicação do devir das sociedades. Em todos esses pontos o cinema intervém.(p. 13)

Esse trecho de abertura dá a tônica do debate e da explanação que Marc Ferro constroi nas suas 143 páginas. Cujas teses são as seguintes:

1.      O Cinema é agente da história;

2.      Com o seu modo próprio de expressar, da narrar, o Cinema opera um impacto no espectador, pois este tem a sensação de estar vivendo o momento histórico abordado;

3.      O Cinema é um embate entre a sociedade que o produz e a sociedade que o recebe;

4.      O Cinema produz uma leitura histórica do passado e pode confrontar a tese do historiador.

No que tange à ideologia predominante do Estado, às vezes o cineasta consegue ir além da propaganda oficial e até expor lacunas desse patrão, o Estado, uma vez que fazer cinema é fazer arte, e a subversividade é uma característica de toda e qualquer arte.

Os filmes produzidos a favor ou contra determinado país está de acordo com o momento e, assim, ao sabor das novas relações entre os Estados Nacionais, isto é, podemos assistir a filmes com visões diferentes sobre um mesmo país, feitos em momentos distintos da História, e por diretores de uma mesma nacionalidade.

 

Ferro em um dado momento de seu livro, na parte intitulada Sociedade que produz Sociedade que recebe, analisa dois filmes que receberam críticas contrárias, mas que fizeram muito sucesso de bilheteria, são eles: O Terceiro Homem, de Carol Reed e A Grande ilusão, de Robert Rossen. Ambos puserem em cheque a capacidade das sociedades hegemônicas da época, EUA e Reino Unido ao incluir temas como judeus, homossexualidade e outros como passiveis de convivência social e dotados de capacidade como qualquer ser humano.

Um dos capítulos do livro é uma entrevista que o autor concedeu aos Cahiers du Cinéma, em 1975, intitulado Sobre três maneiras de escrever a história, no qual, novamente, sustenta a tese de ser o Cinema uma fonte histórica. Segundo ele o Cinema foi desacreditado por algum tempo, mas após o primeiro grande conflito mundial seu poder de registro – ficção ou não ficção – passou a ser respeitado, inclusive os nazistas foram os que mais o utilizaram como veículo de propaganda e disseminação desse mesmo poder, nazista. Por isso e por outros motivos, temos uma grande fonte que faz história na História, como o próprio autor costuma usar as iniciais minúscula e maiúscula para o mesmo termo em determinados momentos do livro, numa clara provocação ao poder constituído, dessa vez, pelos historiadores de formação, não diretores de cinema.

No seu maior capítulo, O Filme: uma contra-análise da sociedade?, o autor continua a nos instigar a pensar esse objeto como fonte histórica para o historiador e faz a seguinte ressalva metodológica. O filme, aqui, não está sendo considerado do ponto de vista semiológico. Também não se trata de estética ou de história do cinema. Ele está sendo observado não como uma obra de arte, mas sim como um produto, uma imagem-objeto, cujas significações não são somente cinematográficas.(p. 87)

Ler e estudar Cinema e História de Marc Ferro é um exercício dos mais agradáveis, pois reúne ciência e arte e nos leva necessariamente também a ver os filmes analisados pelo autor, ao tempo em que nos instiga a construir nossas teses para outros filmes, inclusive os nacionais.

Por marcos josé de souza

15 de Setembro de 2020

 

sábado, 1 de agosto de 2020


O diretor de cinema como historiador II

Historiadores e Cinema, Cineastas e História: o Diretor como historiador II

O Cinema e a Literatura e o Cinema e a História há mais de um século vem construindo olhares, dialogando saberes, criando arte. Revivendo, revisitando, contestando, criando novos olhares, novas possibilidades de arte. É o que vem nos propondo Sergio Rezende nestas duas semanas ao revisitar elaborando novas(?) narrativas para fenômenos e pessoas historicamente situadas na História do Brasil, oficial ou não, mas que marcaram seu tempo e seu lugar na vida desse país. Mesmo atribuindo o substantivo “pessoa” sabemos que elas agiram dentro de circunstâncias coletivas, direta e indiretamente.
As pessoas às quais me referi acima são as mesmas que dão nomes aos filmes, trata-se de Lamarca e Zuzu Angel (já analisada em momento anterior a este), cujas vidas se entrelaçam movidas por interesses semelhantes e agora, temos um episódio histórico, a guerra de Canudos, uma ofensiva do Governo da União, via ação do Exército brasileiro, em terras brasileiras, que ocorreu no final do século XIX, no Estado da Bahia, onde hoje se situa o município de Canudos. Outro diferencial desta película frente às duas primeiras é que o diretor além de dialogar com a História, como ocorre com as demais, também recorre à Literatura para produzir seu roteiro e sua obra, o filme, lançado em 1997, Guerra de Canudos.
Para tratar do tema – episódio histórico – Rezende faz uso direto de romances(?) de dois autores consagrados pelos trabalhos realizados sobre este mesmo episódio, a guerra de Canudos, a saber, O Rei dos Jagunços, de Manuel Benício e Os Sertões, de Euclides da Cunha, sendo esta segunda consagrada como obra prima nacional e internacional como análise explicativa deste momento/episódio da nossa história. Vale ressaltar que foi publicado um livro sobre a produção deste filme cuja autoria esteve a cargo da esposa dele, Nilza Rezende, no qual afirma-se que a película tem como fontes de informação os livros citados acima.
A película traz um diferencial, para quem conhecia a história do episódio, ao colocar como protagonista um núcleo familiar e dentro, a filha mais velha, Luísa, assume a liderança diegética. O diferencial, frente ao título do filme e ao conhecimento do momento episódio, deve-se ao fato de que a guerra foi motivada pela existência de um beato peregrino, Antonio Conselheiro que com seu séquito, fundou uma cidade, o Belo Monte e lá construiu uma sociedade com tendências igualitárias onde toda a produção era dividida para todos, possuindo códigos de ética e de conduta próprios, enfim uma microssociedade brasileira alheia à República recém instalada.
Com a cidade se desenvolvendo sua vida diferenciada e tornando-se conhecida pelas imediações não tão próximas assim, foi conquistando ainda mais adeptos – cuja conhecimento advém das andanças do líder, Antonio Conselheiro – e adversários, dentre eles, o governo baiano, inicialmente, e depois o governo federal, que começam a agir contra aquela população. Outro grande adversário que foi sendo construído ao longo da caminhada de A. Conselheiro foi a Igreja Católica que perdeu adeptos e força perante  a população da região frente ao carisma do líder que segundo consta, pregava e praticava boas obras e acolhia os necessitados, se alimentando pouco, dormindo em situações precárias, até no chão, diferentemente da Igreja que somente exercia poder e controle sobre os fieis e usufruía dos beneplácitos das ofertas desses mesmos fieis.
O período histórico abordado pelo filme é de 04(quatro) anos, portanto um bom tempo de vida para uma cidade construída à mão e em tempo também reduzido, haja visto que a vida de peregrinação do seu líder começara no Ceará e, a pé, pelos sertões de todos os Estados da atual região Nordeste, exceto o Maranhão, temos praticamente uma década de vida

E do que trata, então, a película? Partindo do próprio título Guerra de Canudos, temos a ação do governo republicano e suas novas regras de convivência e de subserviência, aliadas à intimidação e violência com a investida do Exército  contra o povo do Belo Monte e contra a própria cidade, pois como vimos, ela foi incendiada, mesmo tendo sendo vencido o conflito bélico. Internamente à ação desses atores temos outro núcleo gerador da narrativa – a família de Zé Lucena -, citado acima, tendo como protagonista desse núcleo o personagem Luísa. É ela quem faz o contraponto entre os antípodas Belo Monte e Exército.
O filme vai intercalando o conflito com a vida de Luísa: inicialmente sua fuga de casa, em pleno momento em que A. Conselheiro e seu séquito convidam a família dela a seguirem juntos. Em seguida sua vida de prostituta, quando começa a analisar a nova vida que surge no sertão, ao se envolver com um barão, a ouvir relatos de soldados, da gente do lugar e até mesmo de quem participa da guerra, nos campos de batalha. Daí, casa-se com um soldado desertor, o que lhe dará mais informações e experiência de vida, inclusive morando no campo de batalha.
Por fim, ao perder o marido para a guerra, passa a conviver com um tenente, já nos momentos finais do conflito, quando tem os últimos contato com a família – já sem o irmão – Luísa vai entendendo que ao mesmo tempo que incompreendeu A. Conselheiro, o Exército é exatamente o contrário do que apregoa, pois vê o atual companheiro lançar bombas sobre as casas e também vê a própria mãe ser assassinada pelos soldados, mesmo já sob o controle deles e com as mãos amarradas.
Desse modo e pelo exposto acima, temos em Guerra de Canudos, de Sergio Rezende, uma obra de cunho histórico, fez história dando destaque, visibilidade, a um episódio histórico importante para o povo brasileiro, mas com pouca penetração no universo escolar e cultural deste país. Por esses motivos consideramos ser o diretor um cineasta historiador e seu filme agente histórico, uma vez que o tema é de pouco conhecimento popular e sua produção diminui esse fosso, em face principalmente de que sua primeira versão foi uma minissérie televisiva, portanto de forte apelo popular. Também o consideramos uma fonte histórica haja visto essa popularização alcançada via televisão em tempos de informação “fast-food” (rapidez no acesso, porém com difícil ou nenhuma absorção) por meios eletrônicos e digitais, isto é, além dos livros e artigos e outros fontes textuais que tratam do tema, temos a Guerra de Canudos em filme, uma opção para os novos pesquisadores.

segunda-feira, 27 de julho de 2020






Historiadores e Cinema, Cineastas e História: o Diretor como historiador I


Em que medida um cineasta historiografa um evento, um acontecimento, um episódio um indivíduo, um grupo social? É possível que outro profissional (?) além do Historiador, acadêmico ou não posso registrar um fato ou uma pessoa, considerados históricos? Mas o que configura o status de histórico a qualquer um dos “tipos” já citados aqui que sejam passíveis de entrarem para a História? Por fim, por enquanto, em meio a tantas perguntas, mais uma delas: o que é História?
Sem a pretensão de dar respostas, em primeiro lugar por que não tenho as respostas prontas e definitivas, em segundo lugar, as dimensões desse texto e a sua natureza não permitem tanto espaço haja visto a imensidão que forma o universo das possíveis respostas já formuladas ao longo de mais de 2 séculos de debates sobre aquelas questões. No entanto atrevo-me a afirmar que é possível a qualquer pessoa fazer, elaborar, historiografar um episódio ou a vida de alguém, e se esta pessoa for um cineasta, ela terá muitas ferramentas e conteúdo para construir a obra. Faço esta afirmação tendo em vista que o Cinema, como arte múltipla pode registrar o cotidiano e, muito mais, revisá-lo, reconfigurá-lo e contestá-lo. A partir destas ações o cotidiano deixa o presente e começa a fazer parte do passado, desse modo o Cineasta, tal qual o Historiador, de cátedra, isto é, de formação, também debruça-se sobre o ontem, seja próximo, medianamente, distante ou muito distante.
A partir dessas breves observações podemos afirmar que o cineasta Sérgio Rezende, em Lamarca, 1994 e Zuzu Angel, 2006, construiu dois percursos individuais, mas não isolados, desses dois personagens que entraram para a História do Brasil, inicialmente somente no que é entendido como extra-oficial, isto é, a História não assumida pelo Estado, sendo oficial quando este assume inclui nos registros considerados oficiais, uma vez que o poder constituído “concedeu” o status de ser estudado, lembrado, pela população, seja através de documentos, monumentos, e até mesmo estudado nas escolas constante nos livros didáticos.
O percurso de vida dos personagens que dão título aos filmes não se cruzam, Lamarca e Zuzu Angel, mas a motivação do segundo, a busca pelo paradeiro do próprio filho, Stuart Angel – ou do corpo dele – faz esse cruzamento, portanto temos duas películas que tratam de duas pessoas, contemporâneas e que estão em ação conjuntamente, a reação contra o endurecimento do Regime Civil-Militar contra seus opositores. Enquanto Lamarca constroi sua formação política no exercício da vida militar, consolidada quando esteve a serviço das chamadas Forças de Paz da ONU, no Canal de Suez, ao se deparar com a vida miserável dos beduínos. Stuart Angel, filho de classe média(ou média alta), tem sua formação políticas nos corredores e salas de aula da Universidade e, por extensão, Zuzu, a mãe, vai forjando sua “formação” a partir dessa busca corajosa pelo corpo do filho, uma vez que à medida que os dias, as semanas e os meses se passam ela vai se certificando de que a busca somente poderá trazer de volta o corpo do, não mais o próprio filho.
E é com esses indícios cruzamento de vidas, de registros episódicos de ambos os personagens principais elaborados por Sergio Rezende e equipe, que podemos afirmar que é possível ao cineasta produzir uma historiografia, ou um produto da História. E no caso especifico de Rezende, seus filmes são frutos de pesquisa – aqui inclusas as mais variadas fontes, principalmente para a construção de Zuzu Angel – desde relatos pessoais de amigos, parentes, audição de fitas cassete, leituras de livros. Quanto a Lamarca, segundo o próprio Rezende, somente uma biografia foi consultada para a produção, o livro de Emiliano José e Oldack Miranda, Lamarca, o capitão da guerrilha.
São, portanto, Lamarca e Zuzu Angel filmes de representação histórica que certamente já foram transformados, por força das circunstâncias, o ineditismo dos temas, em fontes e agentes da História desse país que ainda aspira a condição de Nação.

domingo, 19 de julho de 2020



AS RELAÇÕES DE TRABALHO NO CINEMA, O OLHAR, O FAZER CINEMA DE LEON HIRSZMAN















Nesta quinzena fizemos uma imersão no Cinema que traz o Trabalho e a formação brasileira, especificamente no trabalho de Leon Hirszman, especialmente nos filmes ABC da Greve e Eles não usam Black-Tie, de 1979 e 1981, respectivamente. Nesses trabalhos, que se complementam, ou melhor, dialogam entre si, mas com total independência, vida própria, tratam do cotidiano dos trabalhadores da região paulista denominada de ABC, centro da indústria automotiva brasileira, – dentro e fora das linhas de produção -  incluindo nesse cotidiano, o do lar. Com ênfase em “ABC...”, no primeiro aspecto, e no segundo, “Eles não usam...”.
Esses filmes, tratam explicitamente das relações de trabalho, incluindo nessa expressão, o modus operandi do trabalhador em ação, isto é, trabalhando e enfrentando os dissabores de um ambiente fabril periculoso e insalubre, sendo mal remunerado, bem como o potencial de organização de classe frente a esses problemas e outro, gerado pela reação àqueles problemas, a própria ação sindical. Isto é, a organização dos trabalhadores brasileiros, naquele momento histórico, também enfrentaram a possibilidade de organização quanto tiveram suas associações de classe interrompidas pelo Estado Brasileiro.
Como se não bastasse, o cotidiano do lar, desde a moradia, a ausência de ações/políticas públicas daquele mesmo Estado que intervinha na organização dos trabalhadores, não intervém para a superação dos problemas de ordem social, isto é, ruas sem calçamento e esgotamento sanitário, ausência também de áreas de lazer, problemas familiares internos, que vão desde os conflitos ideológicos, passando pelo de relacionamento em função de vícios, a perseguição aos povo negro – tal qual o capitão do mato de outrora, etc fazem parte da trama de “Eles não usam...”.
E é naquele viés  histórico abordado no final do segundo parágrafo que os filmes vistos também são lidos, uma vez que Hirszman também representa a história, no segundo, e em ambos, são agentes históricos e assim, se transformam em fontes históricas. Senão vejamos: o filme ABC da Greve um documentário que “cobre” algumas paralisações dos metalúrgicos da cidade de São Bernardo do Campo, SP, incluindo greve e manifestações públicas, tanto numa praça da cidade, quanto em um estádio de futebol. Portanto, o cineasta registrou fatos criados por trabalhadores, em reação à ação nefasta dos empresários daquele setor. Os acordos entre trabalhadores e patrões são fechados, mas a sensação de vitória não é total, mas demonstrou a força da organização da categoria. Apesar e por isso, os trabalhadores voltam à sua vida comum, insalubre e perigosa, dentro e fora da fábrica. Vê-se ali a quase totalidade da força masculina, com baixa escolaridade e com pouca, mas muito pouca presença do povo negro.
A representação histórica dá-se em Eles não usam Black-Tie, que mesmo sendo uma obra de ficção traz indícios de um evento histórico – as greves e movimentos socias daquele período e também tratados em ABC ... - cujo roteiro é fruto de uma peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri, que também participa do filme. O enredo gira em torno de uma família composta por 04 membros, a mãe, o marido e dois filhos. E é entre o pai e o filho mais velho que vemos as ideologias em choque, as mesmas vistas entre patrão e empregado em ABC , quando o filho não coaduna com a postura do pai, já experiente na luta por melhores condições de vida – trabalho, renda, moradia, lazer – inclusive já tendo sido preso por essa postura. Acusa o pai de que a luta não os levou a lugar, “além dessa merda de vida”, ao passo que o pai retruca dizendo que sem luta a vida não faz sentido e que a postura do filho somente fortalece o patrão que é o causador da situação pela qual ele, e milhões de brasileiros continuam assujeitados.
E ambos, 40 anos depois, são vistos e revistos desde seus lançamentos, contribuindo para a formação do pensamento político brasileiro no que tange às  relações de trabalho de uma determinada categoria de trabalhadores frente às lutas que forjaram, de um tempo histórico – estávamos no limiar do ocaso de Ditadura civil-militar, em uma determinada região do país, a mais rica, diante da ação arrocho salarial, de quebra de direitos – políticos, sociais e trabalhistas – de uma classe social que somente via e vê o próprio  lucro, com posicionamento idêntico ao dos escravocratas e dos industriais britânicos do alvorecer da Industrialização.
Vale ressaltar que o tema Trabalho no cinema brasileiro é pouco recorrente, mas não é recente, cujos temas mais frequentes giram em torno da industrialização brasileira alocada em São Paulo, incluindo nessas temáticas, tanto questões de ordem coletiva, quanto individual, notadamente influenciada pela primeira. Isto é, alguns filmes centram a trama em um indivíduo e seus conflitos pessoais, os quais são determinados pelos problemas da coletividade. Outras tramas “focam” a cidade  e seus desdobramentos sociais e econômicos gerando conflitos individuais e coletivos, mas em todos vê-se a perversa ação do capital frente coisificação do homem, para a obtenção do lucro, do poder, da hegemonia de poucos, o patronato, frente à diminuição recorrente do poder de compra, do nível social, econômico e cultural de muitos, os trabalhadores.
Frente a essas constatações, a essa realidade social, à exploração da classe trabalhadora, o Cinema de Leon Hirszman, nestes filmes aqui vistos e em outros, tem contribuído tanto para a denúncia, quanto para o esclarecimento do modus operandi do capital nesta nossa periferia, o Brasil. O Cinema de Hirszman inquieta, provoca, pelo visto, e de acordo com diversas pesquisas já realizadas sobre seu modo de fazer Cinema, ao mesmo tempo que nos informa e entretece, apesar do que se vê em suas películas.
 Mas a arte, e o Cinema é uma delas, tem vários propósitos, conflitantes, às vezes, mas um deles é este: (in)formar. Ser sujeito e atuante do seu tempo, sendo também ele próprio, o artista, um agente da História, marcando nesta também, o seu lugar.

sábado, 11 de julho de 2020


 









 
O Cinema e a Literatura e o Cinema e a História há mais de um século vem construindo olhares, dialogando saberes, criando arte. Revivendo, revisitando, contestando, criando novos olhares, novas possibilidades de arte. É o que vem nos propondo Sergio Rezende nestas duas semanas ao revisitar elaborando novas(?) narrativas para fenômenos e pessoas historicamente situadas na História do Brasil, oficial ou não, mas que marcaram seu tempo e seu lugar na vida desse país. Mesmo atribuindo o substantivo “pessoa” sabemos que elas agiram dentro de circunstâncias coletivas, direta e indiretamente.
As pessoas às quais me referi acima são as mesmas que dão nomes aos filmes, trata-se de Lamarca e Zuzu Angel (já analisada em momento anterior a este), cujas vidas se entrelaçam movidas por interesses semelhantes e agora, temos um episódio histórico, a guerra de Canudos, uma ofensiva do Governo da União, via ação do Exército brasileiro, em terras brasileiras, que ocorreu no final do século XIX, no Estado da Bahia, onde hoje se situa o município de Canudos. Outro diferencial desta película frente às duas primeiras é que o diretor além de dialogar com a História, como ocorre com as demais, também recorre à Literatura para produzir seu roteiro e sua obra, o filme, lançado em 1997, Guerra de Canudos.
Para tratar do tema – episódio histórico – Rezende faz uso direto de romances(?) de dois autores consagrados pelos trabalhos realizados sobre este mesmo episódio, a guerra de Canudos, a saber, O Rei dos Jagunços, de Manuel Benício e Os Sertões, de Euclides da Cunha, sendo esta segunda consagrada como obra prima nacional e internacional como análise explicativa deste momento/episódio da nossa história. Vale ressaltar que foi publicado um livro sobre a produção deste filme cuja autoria esteve a cargo da esposa dele, Nilza Rezende, no qual afirma-se que a película tem como fontes de informação os livros citados acima.
A película traz um diferencial, para quem conhecia a história do episódio, ao colocar como protagonista um núcleo familiar e dentro, a filha mais velha, Luísa, assume a liderança diegética. O diferencial, frente ao título do filme e ao conhecimento do momento episódio, deve-se ao fato de que a guerra foi motivada pela existência de um beato peregrino, Antonio Conselheiro que com seu séquito, fundou uma cidade, o Belo Monte e lá construiu uma sociedade com tendências igualitárias onde toda a produção era dividida para todos, possuindo códigos de ética e de conduta próprios, enfim uma microssociedade brasileira alheia à República recém instalada.
Com a cidade se desenvolvendo sua vida diferenciada e tornando-se conhecida pelas imediações não tão próximas assim, foi conquistando ainda mais adeptos – cuja conhecimento advém das andanças do líder, Antonio Conselheiro – e adversários, dentre eles, o governo baiano, inicialmente, e depois o governo federal, que começam a agir contra aquela população. Outro grande adversário que foi sendo construído ao longo da caminhada de A. Conselheiro foi a Igreja Católica que perdeu adeptos e força perante  a população da região frente ao carisma do líder que segundo consta, pregava e praticava boas obras e acolhia os necessitados, se alimentando pouco, dormindo em situações precárias, até no chão, diferentemente da Igreja que somente exercia poder e controle sobre os fieis e usufruía dos beneplácitos das ofertas desses mesmos fieis.
O período histórico abordado pelo filme é de 04(quatro) anos, portanto um bom tempo de vida para uma cidade construída à mão e em tempo também reduzido, haja visto que a vida de peregrinação do seu líder começara no Ceará e, a pé, pelos sertões de todos os Estados da atual região Nordeste, exceto o Maranhão, temos praticamente uma década de vida

E do que trata, então, a película? Partindo do próprio título Guerra de Canudos, temos a ação do governo republicano e suas novas regras de convivência e de subserviência, aliadas à intimidação e violência com a investida do Exército  contra o povo do Belo Monte e contra a própria cidade, pois como vimos, ela foi incendiada, mesmo tendo sendo vencido o conflito bélico. Internamente à ação desses atores temos outro núcleo gerador da narrativa – a família de Zé Lucena -, citado acima, tendo como protagonista desse núcleo o personagem Luísa. É ela quem faz o contraponto entre os antípodas Belo Monte e Exército.
O filme vai intercalando o conflito com a vida de Luísa: inicialmente sua fuga de casa, em pleno momento em que A. Conselheiro e seu séquito convidam a família dela a seguirem juntos. Em seguida sua vida de prostituta, quando começa a analisar a nova vida que surge no sertão, ao se envolver com um barão, a ouvir relatos de soldados, da gente do lugar e até mesmo de quem participa da guerra, nos campos de batalha. Daí, casa-se com um soldado desertor, o que lhe dará mais informações e experiência de vida, inclusive morando no campo de batalha.
Por fim, ao perder o marido para a guerra, passa a conviver com um tenente, já nos momentos finais do conflito, quando tem os últimos contato com a família – já sem o irmão – Luísa vai entendendo que ao mesmo tempo que incompreendeu A. Conselheiro, o Exército é exatamente o contrário do que apregoa, pois vê o atual companheiro lançar bombas sobre as casas e também vê a própria mãe ser assassinada pelos soldados, mesmo já sob o controle deles e com as mãos amarradas.
Desse modo e pelo exposto acima, temos em Guerra de Canudos, de Sergio Rezende, uma obra de cunho histórico, fez história dando destaque, visibilidade, a um episódio histórico importante para o povo brasileiro, mas com pouca penetração no universo escolar e cultural deste país. Por esses motivos consideramos ser o diretor um cineasta historiador e seu filme agente histórico, uma vez que o tema é de pouco conhecimento popular e sua produção diminui esse fosso, em face principalmente de que sua primeira versão foi uma minissérie televisiva, portanto de forte apelo popular. Também o consideramos uma fonte histórica haja visto essa popularização alcançada via televisão em tempos de informação “fast-food” (rapidez no acesso, porém com difícil ou nenhuma absorção) por meios eletrônicos e digitais, isto é, além dos livros e artigos e outros fontes textuais que tratam do tema, temos a Guerra de Canudos em filme, uma opção para os novos pesquisadores.




domingo, 5 de julho de 2020



Cinema, Documentário e Ficção: qual a "fidelidade histórica?"


O que é a história em O que é isso Companheiro? e em Hércules 56?





Com essas perguntas simples pretendemos dissertar sobre os dois filmes lidos, analisados e discutidos nesta semana que hoje se encerra, O que é isso, companheiro, de Bruno Barreto, 1997 e Hércules 56, de Silvio Da-Rin, 2007. Enquanto o primeiro propõe-se como um filme de ficção baseado em fatos, portanto também em pessoas, instituições, entidades reais, o segundo, é um documentário feito a partir e com os depoimentos de quase todos os participantes do evento que deu origem a ambas as películas, a saber, a captura do embaixador dos Estados Unidos, fato ocorrido em setembro de 1969.
Pelo exposto acima os filmes foram realizados com uma década de diferença entre ambos e do próprio evento, 28 e 38, anos respectivamente, ao primeiro e segundo filmes. Mas por que trago essas datas e limites temporais? Para nos lembrarmos de que cada um responde ao seu momento histórico, ao contexto político em que cada um foi criado.
O filme de Bruno Barreto pertence ao pós abertura política, ocorrida nos anos de 1980, consolidando o renascimento da democracia no país e em pleno governo de Fernando Henrique Cardoso, à época do episódio real, também fora vítima da sanha ditatorial do governo brasileiro, portanto, alguém “sensível” à exposição, mesmo que representativa, dos fatos históricos recentes do Brasil. Já o filme de Da-Rin, pelas leituras realizadas, intrínsecas ou não à nossa disciplina aqui, nos revelaram que ele aconteceu muito mais como resposta às reações negativas ao filme de Barreto, feitas a partir de novos programas de incentivo à produção cinematográfica brasileira, promovidas pelo Estado e suas Fundações e Autarquias. Em ambas as produções a legislação estava sendo usada.
E o que temos em O que é isso companheiro?: um filme de aventura promovida esta ação por um grupo de jovens que entraram na luta armada contra a Ditadura civil-militar implantada no Brasil há cinco anos. São membros de duas entidades políticas organizadas com o fim de tomarem o poder e dentre suas ações promovem a captura do embaixador dos Estados Unidos para usarem como moeda de troca por prisioneiros políticos das mais variadas “tendências” políticas de esquerda. Ideia concretizada em pleno sete de setembro, isto é, a soltura do capturado e os companheiros soltos e exilados no México.
À época o filme teve boa aceitação de público, mas a crítica e principalmente os participantes do evento, não viram com bons olhos a obra e sobre ela teceram severos comentários como, por exemplo, a crítica: o filme é um melodrama hollywoodiano e o personagem principal é o embaixador. Já os participantes rechaçam a liderança de Fernando Gabeira (autor de um livro de memória sobre o episódio homônimo ao filme sobre o qual Barreto se baseou) e outros detalhes do processo de captura do embaixador.
Por sua vez Da-rin promove uma releitura histórica e constroi seu filme a partir de depoimentos, divididos em dois grupos de participantes: o primeiro, reunido em torno de uma mesa, cinco pessoas e o diretor, numa sala com pouca iluminação, tal qual uma mesa de bar e ao mesmo tempo uma sala de depoimentos à polícia. Todos falam sobre o pré, durante e pós episódio; o segundo, individual, isto é, cada entrevistado em sua própria casa, incluindo dentre esses Agonalto Pacheco, em Aracaju. A ideia que tive desse exposição e modus operandi de depoimentos foi o de que o primeiro grupo estava livre, mas havia a sombra da clandestinidade e das prisões, enquanto o segundo, a liberdade no sentido estrito, em sua própria casa, em seu lar. Outro detalhe do grupo em torno da mesa foi o de que as ideias diferentes foram postas “à mesa”, incluindo questões reveladas durante a realização do filme, isto é, houve espaço para o debate, para o contraditório.
Entretanto o que se abstrai dessa querela é a verdade histórica sobre um episódio importante da recente história política do Brasil. Enquanto Barreto se propôs a fazer uma leitura particular, sobre um episódio e baseado em uma obra literária, Da-rin propôs-se a construir um documento histórico via depoimento. Em ambas as situações temos duas visões limitadas, uma vez que aquilo que passa na tela é parte de uma paisagem, portanto não é a verdade absoluta. Enquanto o primeiro passou de cinema como fonte histórica a cinema como representação histórica, o segundo é majoritariamente cinema como fonte histórica, pois fora construído com os participantes de um evento real e elaborado como resposta ao primeiro. Como agentes históricos somente o tempo posterior a este nosso irá dizer, o que até o momento não temos informação dessa força de ambas como produtores de história para além da própria cinematográfica.