segunda-feira, 29 de junho de 2020


Cinema como agente histórico II: utopias, distopias contemporâneas


Nesta semana fomos brindados e presenteados com dois exemplos, bons, de filmes antípodas, mas que se retroalimentam o tempo inteiro para tratar de dois tempos humanos quanto à sua vivência e convivência, qual seja, a utopia e não utopia – redundante? – ou seja, a distopia. Aproveito o ensejo para felicitar nosso professor da disciplina pela feliz indicação de leituras fílmicas e na sequencia sugerida para assistirmos. São eles, O Invasor, de Beto Brant e O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho.
Se no primeiro filme somos conduzidos, arrastados, atropelados pela invasão não concedida, tendo em vista o convite feito por uma das partes, ao ser protocolado um  negócio, o qual vamos ver que se desdobra e redobra para dentro de si; no outro, temos o lugar “sossegado” de uma gente que pensa estar imune ao que a rodeia, apesar do “som” permanente, diário. Essa sequência de exibição é que vai provocar ainda mais no estudante/leitor/pesquisador uma ansiedade não saciada de lugar em constante ebulição, mesmo que esta efervescência seja perceptível, ou não.
Buscando nossos referencias filosóficos quanto aos termos destacados na semana, vimos no dicionário de Nicola Abbagnano e também explorada pelo nosso professor, que utopia trata-se de um nome dado a uma ilha pelo escritor Thomas Morus, na qual a vida beirava à perfeição. Entretanto, muito antes dele, o filósofo Platão também “criaria” um modo de vida na cidade, mesmo sem nomear como utopia, mas que preconizava uma sociedade nos moldes estabelecidos séculos após por Morus.
Quanto ao termo Distopia, não é encontrado em Abbagnano, e seu surgimento ocorreu séculos depois de Morus criar seu romance político, exatamente para designar uma vida contrária à vista ali em A Utopia, isto é, a vida distópica passou a ser aquela em que a elaboração humana não conseguia promover o bem estar de toda a sociedade, principalmente pela força da opressão do poder contra a população, simplificadamente falando.
Beto Brant nos traz a “vida” da nossa metrópole, São Paulo, no microcosmo da empresa de Ivan, Gilberto e o terceiro sócio, vítima da ação nefasta daqueles dois, cuja narrativa não nos esclarece a razão por que os dois o mandam matar. Deduz-se pela diegese que o sócio assassinado descobrira “algo de podre no reino da Dinamarca” daquela sociedade empresarial. A vida cheia dos  prazeres e das benesses que as famílias dos sócios dispunham, advindas do trabalho e das relações políticas da empresa, criavam uma aura de vida perene para além da normalidade, ou como dizem por aí, uma vida para além daquelas vividas pelos simples mortais. Entretanto o nosso ímpeto não disciplinado, domesticado, pode criar uma ou mais situações que desmoronam qualquer construção, por mais alicerce que ela tenha. Eis que a vida normal é atropelada, é invadida.
A câmera em O Invasor era rasteira, horizontal, valorizando o olho no olho, a rua, o movimento dela, que mesmo sendo em São Paulo não tivemos tempo para os arranha-céu, para as buzinas dos automóveis e seus intermináveis congestionamentos. Vimos e ouvimos cores fortes, misturadas, vimos e ouvimos músicas da periferia, diegeticamente ou não. Destaco duas cenas que ilustram a invasão e que desencadeia a distopia, simultaneamente: o momento em que Anísio, o matador, adentra o escritório da empresa pela primeira vez, não mais para receber ordens para matar outra pessoa, mas para ser o novo sócio, à maneira dele, daquele escritório. O segundo momento é quando Ivan, o sócio arrependido, mandante do crime, que ao se entregar à polícia tivera a sensação momentânea de estar a salvo, mas descobre que fora devolvido aos agora algozes, antes parceiros dos crimes do próprio sócio.

Mas o passado te condena. Foi assim com um “ilustre” morador e “dono” de uma rua da cidade do Recife vai nos revelando/descortinando aos poucos, mas a dica foi deixada no início da película quando fotos do canavial e sua gente que manda e também que trabalha, são expostas. Até mesmo o ilustre Gilberto Freyre(ou é alguém bem parecido?) dá o ar da graça nessas fotografias, aliás, signo de poder em tempos não muito remotos, o de ter fotografias em casa: político e econômico.
Nada mais desejado para grande parte da população o de viver em tranquilidade, mas nada que está posto é garantia de suavidade, de perenidade...é o que vemos e vimos em O Som ao redor. O cotidiano nos rondando, sorrateiramente, sendo parte da casa, da rua, da rotina. Os sinais do passado reaparecendo, insistindo em aparecer, forçando a porta, delicadamente, mas forçando.
Ali no chão do Recife, parafraseando o poeta da musica pernambucana, com referencia moscovita, o Lenine, a vida pulsa, mesmo que de modo transverso, estando o passado também ali. E por isso, devagar, sem ser monótono, Kleber Mendonça Filho nos apresenta um passado presente e, delicada e discretamente, temos um, dos dois filhos de Antonio, também assassinado a mando, por Francisco, a olhar para o quadro exposto na parede da sala. Um olhar à sua direita, por sobre o ombro, mas percebido pelo permanente usineiro, grileiro de terras de massapê.
Nesta oportunidade, a empresa não existiu, mas os interesses espúrios de um, representante de uma família poder, destruiu a vida simples de uma família que vivia o seu mundo simples, a qual teve a infelicidade de fazer-se cruzar a vida de um latifundiário e usineiro, dono, dono, dono.
As cadeiras caem e no festim da família remediada, ao lado, os cães fogem e eles sorriem...por que o som ao redor os incomoda.
À guisa de conclusão e de analogia temos dois mundos possíveis no cinema nacional contemporâneo, sendo um representante do eixo político e econômico que perdura há 03 (três) séculos, tratando de um lugar comum, estes poderes naquele lugar. O outro, um locus que “desponta” para o poder, fazendo uso de uma paisagem fílmica também não comum. Desse modo, e a partir do exposto, apesar de que me faltam maiores e mais aprofundados elementos, momentaneamente, mas faltam-me, parafraseando uma das nossas interlocutoras, a pesquisadora Lúcia Nagib, considero que o cinema brasileiro alcançou o seu projeto utópico, esteticamente falando.  


4 comentários:

  1. Antes de tudo, agradeço a oportunidade oferecida pelo grande professor Marcos, nos instigando com seu convite a ver tais produções, que certamente nos enriquece.
    O texto do blog já traz com riqueza de detalhes uma interpretação bem aprofundada dos filmes, com nível altíssimo de análise, de modo que nos ajudar a ver com olhos que dificilmente enxergaríamos alguns detalhes se antes não tivéssemos este acesso.
    No entanto, de forma modesta ante tal interpretação, nos posicionamos numa visão mais voltada para as relações sociais que as duas obras apresentam, explorando alguns detalhes e sua conjuntura.
    O Invasor, de Beto Brant, destaca a evidência de “dois mundos” o dos executivos e o da periferia dentro da metrópole São Paulo. Partindo desta percepção nos passos que se segue a narrativa, é possível extrair uma crítica aos que compõem este primeiro mundo elitista na vida real, que muitas vezes se sentem intocáveis, capazes de sobrevoar e até pisotear as demais camadas sociais, com sensação que nunca serão atingidos pelas mazelas fruto da mesma exploração que os colocam acima.
    Nesse sentido, o título é ainda mais sugestivo, pois “o invasor” não se limita a um personagem que se valendo de um poder, adentra à porta do escritório para reclamar sua sociedade na empresa, de modo inconveniente. Ele representa a invasão de um mundo consagrado elitista, intocável, com poderes inclusive para decidir sobre a vida de outras pessoas, como fez os personagens Ivan e Giba, quando contrataram Anísio para executar o terceiro sócio, por motivo não muito claro, mas que apontam para lhes conferir mais poderes na sociedade, pois a herdeira da terceira parte não apresenta aptidão pela participação nos negócios.
    Destaca-se que Ivan, embora com passado que se identifica com os rumos finais da narrativa, se apresenta como figura moldada ao mundo executivo, regrada na execução até então bem sucedida da empresa e isto começa a mudar no momento em que é invadido pelo situação que convence a participar do plano de eliminação de seu sócio. Eis o estopim que liga a Anísio, ao outro lado da vida de seu sócio Giba, a invasão desarmonizada do comando da empresa, que também traz a herdeira para cena. Nesse momento é explicitadas as muitas conexões sociais, com evidência ao mundo da periferia e sua proximidade, por mais que muitos insistam em não enxergar. E assim, o desfecho acontece justamente com Ivan inserido em um contexto social oposto daquele que se apresentou, demonstrando arrependimento e na tentativa de se reencontrar, se entregando a justiça, descobre a corrupção policial que te entrega aos seus algozes.

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    1. Boa noite, meu querido Edielson. Obrigado pela gentileza de ter aceitado nosso convite cujo texto revela o cuidado que destinou à empreitada. Feliz estou com sua análise. Cinema é isso, ver e rever os detalhes, afinal eles não estão à toa, mas para revelarem os caminhos da narrativa fílmica.

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  2. O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, não há ênfase a um protagonismo, sendo a soma de vários aspecto com diversas abordagem. Traz uma narrativa sem grande destaque da história que liga Francisco aos dois filhos de Antonio, que embora haja sinais no início, quem assiste menos atento só percebe essa ligação no final. E nesse ponto, ilustra a questão de rivalidades familiares, presentes nos interiores nordestinos, a exemplo do estado de Pernambuco, palco da produção. Na capital Recife, é retratado o cotidiano de parte da sociedade de classe média, que embora longe dos engenhos, conservam valores ligados a exploração do trabalho, como por exemplo, na reunião do condomínio, que a pauta principal é o futuro do porteiro com total desprezo as questões de direito trabalhista e o condômino que levanta a defesa mais sensata é o mesmo que abandona reunião, fazendo pouca questão de sua importância. Esta pegada é inteligente pois não usa o tradicional patrão com moldes executivo e formalizado que é naturalizado neste ofício de explorar, e sim, pessoas “comuns” que conversam “bobagem”, rodam de bicicleta, fumam cigarro comuns e maconha.
    A presença de um modelo miliciano de segurança, num bairro tranquilo, em que o único que quebra parte do sossego (Neto de Francisco) é blindado e tais agentes de segurança que são ferozes para coibir a ação de um adolescente negro, são impotentes e humilhando ante o verdadeiro ladrão do bairro que tem sangue dos que de fato são detentores do poder. No entanto, outra face desta organização é apresentada no sentido de ocupação paulatina de espaço, que possibilita o desfecho objetivado pelos filhos de Antonio.
    Outro aspecto interessante é a utilização de recursos que sinalizam outras abordagens no filme, como por exemplo, a imagens preto e branco no início, que liga o passado ao presente; a água da cachoeira num flash vermelho, chamando a atenção sobre a construção daquele patrimônio sobre o derramamento de sangue, como também o som das passadas no porão do antigo engenho.
    Por fim, o uso dos sons durante todo filme de modo como comumente não é visto em outras produções. Sons carregados de significados, que para alguns são incômodos e para outros são músicas. Que destroem a alegria de quem se diverte no jogo de futebol, mas que se quer é ouvido por quem contribui para propagação. Som do cão que incomoda e que é parte da convivência familiar de quem tem apreço. Ruídos de indignação na pintura do carro despercebidos por ouvidos voltados para outras prioridades. Som de uma convivência social, com decibéis elevados para incomodar, chamar a atenção mesmo quando as condições orgânicas não possibilitam captura. Som que destaca o que dificilmente seria ouvido. E finalmente, som configurado, em que na visível explosão da bomba, se ouve tiros que conduzem ao entendimento de todo desfecho.

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    1. Boa noite, meu querido Edielson. Obrigado pela gentileza de ter aceitado nosso convite cujo texto revela o cuidado que destinou à empreitada. Feliz estou com sua análise. Cinema é isso, ver e rever os detalhes, afinal eles não estão à toa, mas para revelarem os caminhos da narrativa fílmica. Repito todo o texto do comentário sobre o filme O Invasor, acrescentando somente que aqui temos uma película, contrariamente à aqui citada, uma lentidão maior nos fatos o que pode causar nos desatentos a perda dos primorosos detalhes, das mensagens subliminares.

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