domingo, 21 de junho de 2020


O CINEMA COMO AGENTE HISTÓRICO DE SEU TEMPO À LUZ DE TEORIAS TAMBÉM LOCALIZADAS EM SEU TEMPO HISTÓRICO


 


O cinema, a partir de sua multimaterialidade artística, transformou-se em Fonte, em Tecnologia, em Sujeito e Meio de interferência na e para a História e nesta última, podendo ser agente histórico, quando nela interfere, direta ou indiretamente; fonte histórica quando “funciona” como exemplo, espelho ou até parâmetro para identificar-se determinado momento histórico e ainda pode, o Cinema, ser Representação histórica à medida que a ficção e dados históricos se fundem, com a supremacia de um – a ficção, ou de outro – os dados, para a confecção da obra cinematográfica.
Neste momento daremos ênfase ao cinema como agente histórico, a partir dos filmes vistos, a saber, Rio 40 graus (R4G), de Nelson Pereira dos Santos, lançado em 1955 e Cidade de Deus (CD), de Fernando Meirelles e Katia Lund, lançado em 2002, portanto 47 anos de diferença entre as obras. Mas por que faço essa referência? Pelo fato de ambos terem a cidade do Rio de Janeiro como espaço geográfico real, mas historicamente separados por quase 05(cinco) décadas de transformações sob muitos aspectos, mas nem tanto no campo das diferenças sócio-econômicas.
Entretanto a Estética vista nas duas películas nos permitem vislumbrar dois modos de exibição da cidade, enquanto em R4G vemos uma nova geografia humana dominar a tela, quando um grupo de garotos negros, com ausência de família tradicional, vive de vender amendoim em alguns pontos turísticos da cidade, dentre os vários ali existentes. Nelson Pereira nos convida a passear por uma cidade que ao mesmo tempo vibra com o gol no Maracanã, também “assiste” a um dos garotos, quando, em pleno exercício do seu trabalho é atropelado e morto – estava sendo perseguido por um adulto, branco que explorava outras crianças. Em R4G o morro, endereço do povo negro e pobre, faz parte da paisagem e das relações sociais, mesmo que nas condições ali apresentadas: de um fosso sócio-econômico que o separa do asfalto, da praia, dos pontos turísticos. Esta é a “paisagem” urbana e humana que ele nos apresenta e expõe ao mundo, o que levou sua produção a ser censurada pelos motivos mais fúteis, como por exemplo, o de que naquela cidade a temperatura era mais baixa que a indicada no título.
É este novo modo de representar a vida de uma cidade que já era denominada maravilhosa que o diretor impõe ao seu filme a dimensão, o papel de agente da história. É ele, considerado o precursor do que veio a ser considerado como Cinema Novo, grupo de cineastas responsáveis por um novo modo de “mostrar” o Brasil aos brasileiros e para o mundo, sem tornar sua cultura e sua gente, seu espaço geográfico, peça de souvenir, de atração turística, de enfeite. O cinema a serviço da emancipação social, política, cultural.
Mas anteriormente nosso texto afirma que o nosso segundo filme, Cidade de Deus, tem a cidade do Rio de Janeiro como espaço geográfico real e o que diferencia – se é que há diferença - com R4G?
O que faz movimentar CD, isto é, o timoneiro de sua narrativa é a vida de Buscapé, um aspirante a fotógrafo, em meio às transformações do conjunto habitacional onde mora, a Cidade de Deus – ironia, ou sarcasmo do poder público em dar este nome ao lugar? -para onde o governo do Estado aloca diversas famílias, antes moradoras de regiões de interesse de outros sujeitos, provavelmente, detentores do poder constituído oficialmente, ou não.  
Em duas horas o espectador “vive” 3 décadas da vida daquela gente, isso mesmo, somente daqueles indivíduos, cujo principal meio de subsistência é o tráfico de drogas. A “impressão” que se tem é esta, a de que aquele locus não possui ligação com outras partes da cidade, com moradores de outros segmentos sociais. O povo negro e sua violência gratuita, desenfreada, seu autogerenciamento, são as células que compõem aquele organismo quase saltando da tela para o colo, para a cara do espectador.
O filme ganhou prêmios nacionais e internacionais, da mesma forma que R4G, entretanto cada um a seu modo e à sua intenção: o primeiro de revelar o quadro mais complexo possível de uma geografia, o segundo, o de atingir um público, mais amplo – vide o novo tempo em que foi feito e exibido, início do século XXI – cujo fruto é o lucro financeiro. Para alguns, CD, é produto da Cosmética, pois “representa” um dado tempo histórico, explorando os já explorados, tornando-os sujeitos, participes de sua exploração e deglutindo-se entre si, uma espécie de auto-flagelo, ou auto-destruição. E apesar disso e por isso, fez história.
Parafraseando Walter Benjamin, em seu texto A Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, ao se referir à potencialidade do Cinema frente à apresentação da realidade, vemos que com a técnica cinematográfica temos  a possibilidade de não sermos manipulados pela técnica da arte, pois a realidade nos é mostrada com a ajuda da técnica. Diante desse aparente paradoxo e fazendo uma analogia sobre dois filmes “cariocas”, separados por 4 décadas, com duas intenções artísticas, nos perguntamos onde e como o filosofo alemão nos ajuda a compreender os valores estéticos e éticos de cada um dos seus autores.
Essa indagação indireta tem seu valor principalmente por que um elemento dessa relação: produtor-produto, não foi abordado nesse texto, o espectador, afinal a arte é para ser vivida em sua plenitude, isto é para alguém ver, sentir, apalpar, se emocionar. E tecer maiores comentários, por falta de elementos do autor desse texto, deixaremos em aberto esse elemento da relação produtor-obra-espectador. E ao seu modo tivemos dois filmes como grandes agentes históricos, imbuídos de sua Estética intencional, em seus tempos respectivos.


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